Por Rangel Alves
da Costa*
A Velha Zizó
já dizia que onde não existe quintal nem vale a pena chegar à porta dos fundos.
Pensamento parecido com o de Zulmira Rezadeira, para quem é depois da porta dos
fundos, em meio ao quintal, que está a verdadeira riqueza da casa. E
acrescentava que não adianta a casa ser sortida de móvel bonito, com cozinha cheia
de fogão e panela, se no quintal não houver planta, galinha e galinheiro, pé de
pau e árvore frutífera, bicho ciscando por todo canto, tronco de pau para fazer
de tamborete.
Sem dúvida que
nenhuma casa está completa se não houver um quintal, e quanto mais ao modo
sertanejo melhor. Não se tem como moradia de chão a casa que ao abrir a porta
dos fundos não se avista nada. Ou quando muito há um pequeno espaço murado e
coberto de cimento, e sem um pé de planta, uma árvore, um bicho doméstico,
nada. É a casa da porta de trás para frente, apenas isso. E quando se sabe que
da porta da frente adiante pouca coisa boa é avistada.
Talvez seja a
dura realidade encontrada da porta da frente em diante, com a cidade estranha,
violenta, inimiga de qualquer um, que transforma a porta dos fundos numa
espécie de entrada para uma realidade mais humana, singela, sublime,
convidativa. Somente quem abre a porta e encontra o som da natureza, o canto
passarinheiro, que avista a lua e a roupa balançando no varal, conhece bem sua
importância. Ali se sente num misto de lar e natureza, num entremeado de
relíquias e reencontros. Exemplo disso é o velho pilão que ali ecoa sua batida
triste desde os tempos da escravidão.
É no quintal
que o menino vai juntando suas pontas de vaca para depois dizer que é
fazendeiro, e é ali que brinca com seu carrinho de madeira, com seu bicho de
barro, com sua ingênua estripulia. A mulher canta velhas canções enquanto
sacode a roupa na pia pra depois estender no varal. O dono da casa senta num pé
de pau, acende seu cigarro de palha e fica olhando pra cima, tentando a todo
custo enxergar algum sinal de chuva. Ali o velho galho canta ainda na madrugada
anunciando a primeira luz do alvorecer.
A tristeza
também é confortada depois da porta dos fundos. O radinho de pilha traz na
canção saudades dos dias idos, amores não esquecidos, de tempos que não voltam
mais. A mocinha não faz nada no quintal se não estiver com seu radinho. E
depois se dana a cantar e a chorar ao mesmo tempo, até que a manhã grita da
porta perguntando se está endoidando. E somente ali no quintal para tais
situações surgirem tão pulsantes e verdadeiras. Nenhum outro local permite
tamanha liberdade para cantar a tristeza enquanto o vento açoita e passa.
Existem
quintais que são bem maiores que a casa. Outros nem cerca possuem, misturando
seu espaço com a mataria ao redor. Por isso que todo quintal que se preze
possui uma feição de natureza, de mato, de planta, de folha, de bicho, de
goiaba madura e manga gostosa. Mas não adianta um quintal se dele não se tire
proveito de cada pedacinho de chão, principalmente com o cercadinho onde são
encontrados mastruz, erva-doce, boldo e tantas outras espécies medicinais. E
não raro um pé de tomate, uma pimenteira, um ramo de flor.
De
fundamental, pois, a importância dos quintais. A primeira porta aberta ao
alvorecer é a dos fundos. É a partir dela que começa a vida, que os afazeres se
iniciam. Mas o que encontrar e o que fazer no cimento nu, no muro alto, no
vazio feio, na falta até mesmo de uma plantinha para ser aguada? O que fazer no
quintal se não há uma fruta madura para ser recolhida, meia dúzia de ovos para
ser encontrados no galinheiro ou fogão de lenha para ser aceso?
Nas cidades
grandes ou pequenas, a verdade é que ninguém mais chama de sua a calçada da
frente. Quase ninguém mais se arrisca a colocar uma cadeira de balanço ou
tamborete para esperar a aragem do anoitecer e daí a pouco se ver rodeado de
amigos com causos e proseados. Ninguém mais fica em paz ou segurança na calçada
de casa, pois depois da boca da noite tudo fica perigoso demais. Já não passam
os caminhantes noturnos, os conhecidos dos cordiais cumprimentos, mas apenas
estranhos com seus ardis.
Verdade que
muitos se trancam em suas casas e acabam adormecendo diante de uma televisão. E
assim também porque as famílias não se reúnem mais, as pessoas preferem novelas
e filmes a conversar com os seus, discutir pendências e buscar soluções. A casa
em si se torna um meio de convivência de quase desconhecidos, de pessoas que
apenas passam e vão e veem, e pronto. Mas ainda existem aqueles que sempre
preferem a solidão do quintal, pois sabem que não há televisão que consiga
superar aquele cenário ideal para os reencontros ao final do dia.
Sabem muito
bem que todo quintal possui uma magia inexplicável, um encantamento que
transforma a pessoa em muitos, pois onde são abertos os baús das recordações,
esvoaçam os varais da memória, surgem os passos caminhados e as janelas abertas
das saudades tantas. Por isso que todo quintal é sentimentalista, é de doce
melancolia, nostálgico, prazeroso e sempre aconchegante. E melhor ainda se nele
possa ser estendida uma rede de dormir e sonhar. Sonho embalado pelas boas
coisas da vida.
Poeta e
cronista
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