quinta-feira, 17 de setembro de 2015

CRENDICE E FÉ NUM POVO DE DEUS

Por Rangel Alves da Costa*

A crendice se distingue da fé, mas nesta geralmente tem seu fundamento. A crendice é tida como a crença popular, ou seja, aquilo que o povo, por tradição ou costume, tome como verdadeiro, ainda que sem nenhuma explicação racional ou de real existência. Contudo, se o povo acredita em algo a partir de motivos sobrenaturais ou de concepções religiosas, então se tem como verdadeira fé.

E quanto maior a fé maior a crença que a própria existência e tudo na vida dependem da intercessão divina. E nunca se mostra uma fé dependente do conhecimento das escrituras sagradas, dos ritos religiosos ou da obediência aos mandamentos da igreja. A pureza de uma fé em tais moldes está enraizada no sentimento. É a certeza de que a vida é um destino e que tudo está determinado por um desejo sagrado. Também a certeza que os males do mundo se originam da desobediência ao que foi concedido ao homem na sua existência.

Em muitas pessoas, principalmente aquelas mais humildes e viventes nas regiões mais distantes, onde a religiosidade se faz presente desde a primeira oração da manhã aos rogos noturnos, ter fé significa apenas acreditar no poder de Deus sobre todas as coisas. E disto decorre a crença no poder da ação sagrada sobre tudo. Por exemplo, não chove por vontade de Deus, daí que se busca a reversão através das preces, orações, promessas, ladainhas e procissões. A pobreza e as dificuldades na vida também são vistas como desejo divino, mas a fé no seu auxílio permitirá que não falte o pão, que o mal maior não recaía sobre a família, que a subsistência esteja sempre garantida.

Tem-se, pois, que a fé é também uma espécie de crença. Acredita-se no poder de Deus, nos fundamentos da igreja, nos primados próprios da religiosidade, mesmo que jamais tenha lançado o olhar sobre uma linha da bíblia. Como afirmado, diante do povo humilde a fé não prescinde de nenhuma igreja, de vigário ou de missa, pois o divino já surge sacralizado desde as gerações familiares. Ao menos assim em tempos mais antigos. A religiosidade se fundamenta, pois, na crença divina e nos poderes dos santos e anjos, mas também no temor do pecado.


É o temor do pecado que mantém viva a fé e a religiosidade da população mais humilde, principalmente daquelas pessoas mais envelhecidas e que moram em lugares distantes dos sertões nordestinos. Mas também por todo lugar. Temem o pecado para não ir pelo descaminho na hora da morte, para não afrontar os mandamentos religiosos, para ter ajuda divina nas suas necessidades, para que a alma devotada e o coração bondoso não se percam nas influências mundanas.

Entre parte da população mais carente ainda persiste a indefinição entre fé e crença. Por tradições antigas e costumes enraizados nos seios familiares, ainda se concebe a crendice como algo inseparável da fé. Por exemplo, a crença de que deve se benzer toda vez que colocar o pé fora de casa, possui raiz no medo de que os santos não protejam a caminhada. Como observado, é uma crendice fundamentada na religiosidade. Do mesmo modo, a ideia de que não se deve passar defronte a uma igreja sem se benzer. O gesto nada significa se o coração não busca a face de Deus, mas mesmo assim se procede por medo de estar desrespeitando o templo sagrado.

A verdade é que aos poucos tudo vai se deteriorando, diminuindo, perdendo sua razão de existência. Mesmo nos sertões, o fervor religioso e as crenças vão perdendo força cada vez mais. Nem mesmo as rezas, as missas e procissões, possuem acompanhantes como noutros tempos. A igreja não é mais um lugar aonde se chega com véus, livros sagrados, terços e rosários, num silêncio quase enlutado. Poucos são os que ainda confessam, que ainda traduzem as missas na alma e sabem o significado do recebimento da hóstia.

Mas houve um tempo muito diferente. Mas também um tempo misto de fé e de crença. Tanto assim que até os fenômenos da natureza eram vistos em comunhão com os desejos divinos. Se tudo dependia dos poderes de Deus, dos santos e anjos, então aquilo que viesse dos espaços, com as chuvas, as secas, as tempestades e as pragas, era visto como dádiva ou mero castigo. Num povo de fé extremada, bastava que as estiagens se prolongassem para que aos céus fossem lançadas preces em busca da piedade divina.

Os deuses de hoje vivem em céus diferentes do Deus do passado. E há deuses em tudo e para tudo: o deus do acaso, o deus do momento, o deus apenas lembrado de vez em quando. Mas outro Deus ainda faz moradia em muitos lugares e em muitos corações. Há um verdadeiro céu após a porta do casebre interiorano. Há um verdadeiro céu na luz da manhã e em cada instante da vida. E assim acontece pela fé. Um povo de fé encontra o seu Deus e o mantém vivo em qualquer situação de existência.

Poeta e cronista
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