quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

TODA PALAVRA (Crônica)

Por: Rangel Alves da Costa(*)
Rangel Alves da Costa

TODA PALAVRA
  
Desde muito que tenho uma estranha vontade: ouvir toda a palavra, de todas as bocas, de todas as pessoas do mundo. Contudo, principalmente daquelas que o meu quase infalível pressentimento dialoga desde o primeiro olhar, ainda que jamais as tivesse visto.

Creio que terei a palavra daqueles que o meu precavido senso reconheça como digno de ouvi-los. Certamente não esperarei ouvir a voz do orgulho, da empáfia, da vaidade arrogante, da auréola dourada que muitos imaginam carregar.

Palavra com quem seja digno de ouvir e pronunciar, acessível e que não se ache dono da verdade do mundo nem da sabedoria dos tempos, que saiba corresponder aos questionamentos e se sinta refletido naquela realidade pronunciada. Eis o objetivo do diálogo: apenas ter a palavra do outro.


E apenas ter a palavra do outro porque é da primeira pronúncia que se abre o livro da vida, que as ideias vão surgindo, que as verdades, ao invés de serem buscadas, vão brotando cheias de explicações. Daí que uma pergunta de como vai - a mais usual possível - pode gerar profundas revelações.

Como afirmado, infelizmente não é todo mundo que possui o dom da palavra, do diálogo. Não porque seja mudo ou não queira abrir a boca, mas simplesmente porque ignora qualquer tipo de presença ou aproximação de gente que não seja do seu círculo ou de seu quilate. Palavra forjada em falso metal, por não ser inacessível vai enferrujando e some.

Não quero falar com muros, com pedreiras nem com obstáculos. Não quero falar sozinho se posso ter alguém que me ouça. Pessoas que ouvem são como passarinhos que pousam no ombro, bichos que se aproximam sem medo, brisa que chega perfumada e se assenta na pele. Quero um diálogo com uma natureza assim.
   
Basta-me a palavra da verdade, da pureza, da simplicidade, da humildade. Assim, estarei sempre apto e solícito para ouvir a voz da pessoa do povo, daquele que não se destaca a não ser por ser humano, daquele que carrega no olhar e no semblante a luta cotidiana pela sobrevivência.

Que me venha o menino traquina, o garoto levado, a criança arredia; o infante esfarrapado, o moleque sem o banho, a criança com sua mão de esmola ou seu caixote de engraxar sapatos. E também o venturoso, de posses, mas que venha com a simplicidade própria de quem está na vida e não num pedestal.

Que me venha o negro, o preto retinto, o cafuzo, o branco, o louro, o albino, o moreno, o mulato, o trigueiro, o da pele de jambo, o queimado de sol. E não precisam ter palavras bonitas, versos na boca, frases feitas, nem preocupadas em falar certinho. De todos, quero apenas a palavra nua, despida de enfeites, e tão verdadeira quanto o jeito de ser e viver.

Da lavadeira quero sua sabedoria e seu canto; do artesão quero ouvir como se forja a vida e como tempera o barro; do varredor de rua quero sentir sua palavra limpa, uma lição de seu ofício para fugir da imundície; do carteiro as boas novas pelo sorriso naquilo que é ainda segredo; e da simples pessoa que passa quero qualquer palavra.

Na janela, no meio da rua, andando sem direção, as pessoas repousam seus sentimentos nos semblantes que carregam. Olho e vejo um rosto triste. Moça bonita não era para estar entristecida assim, mas verdade que está. E apenas porque passo e dou boa tarde, não dura muito e fico sabendo da saudade grande do amor que está distante e ainda não voltou.


Passeando ao entardecer na beira do cais, eis que avisto uma aflita mulher, andando desesperada de canto a outro, lançando na lonjura das águas os olhos lacrimejantes e tendo à mão um lenço já molhado. Uma pergunta sobre o motivo de tanta dor, e eis a mesma aflição, a vontade de me lançar às águas para buscar o barquinho de pesca, com o seu pescador, antes que a tempestade chegue. O céu já escureceu, as nuvens prenhes já se aproximam, mas o barquinho não.

Sem a palavra nada disso seria conhecido. Porém duvido que ouça qualquer resposta de boca soberba e sem palavra para quem não for igual. Mas desigual em que? Por isso quero ouvir sobre a desculpa do namorado, acaso voltar; e da mulher do pescador. Qual palavra será, será que ele conseguiu voltar?

(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
  
Poeta e cronista
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