domingo, 27 de janeiro de 2013

ESTÓRIA SEM PÉ NEM CABEÇA (Crônica)


Por: Rangel Alves da Costa(*)
Rangel Alves da Costa

ESTÓRIA SEM PÉ NEM CABEÇA
  
Esta é uma estória sem pé nem cabeça. Estava sem sono e resolvi escrevê-la, mas não acredite em nada do que ela contém, até mesmo porque foi tudo verdade. E toda verdade é mentira. Ao menos esta. E esta é a estória da menina que...

Nasceu com pouco menos de oito meses de gestação porque a mãe resolveu tomar remédio do mato pra botar pra fora aquilo que pressagiava ser o fim dos seus dias. Desde os cinco meses, reinando pela barriga, não deixava a pobre coitada sossegar um só instante.

Quando a mãe teve a certeza de ter ouvido uma voz vinda lá de dentro, desmaiou pela primeira vez. Voz de menina, mas parecendo saindo de boca de mulher já feita, dizia que se preparassem que já estava chegando.

Estas foram as palavras da primeira vez que falou, pois na segunda foi muito mais contundente. De forma arrogante, impetuosa, fazendo estremecer a barriga, simplesmente disse que ou a mãe fazia um jeito de ela sair logo dali ou ia ver o que era bom pra tosse. E arrematou dizendo que não estava de brincadeira não.

O coitado do marido, sem saber o que fazer diante do choro e reclamos da esposa, tratou logo de correr em várias direções. Primeiro correu até a casa da velha parteira, depois se embrenhou igreja adentro, e em seguida foi parar na delegacia. E em todos esses lugares tentando resolver a situação tão difícil.

Na casa da parteira tratou da possibilidade de, mesmo antes do tempo, arrancar lá de dentro aquela faladora que não deixava a mãe em paz. Na igreja pediu ajuda ao vigário para o caso de aquela menina já estar possuída pelo pior. Desesperado, na delegacia prestou queixa dizendo que aquela voz havia ameaçado a família inteira.

Ainda na delegacia não se esqueceu de esclarecer sobre a necessidade de dar voz de prisão à sua filha assim que a parteira a trouxesse ao mundo e logo após o padre despejar um balde de água benta por cima do corpo. O delegado afirmou apenas que iria ele próprio averiguar a veracidade dos fatos. Se fosse mentira o pai desnaturado ia ser trancafiado na hora.


Quando a parteira chegou, logo quis ouvir a mãe se contorcendo em dores das tantas pontadas recebidas. Mas assim que passou a mão pela barriga para sentir a criança recebeu uma mordida de uma boca surgida da parte da dentro. Deu um salto tão grande e depois caiu de tal modo estatelada no chão que logo acharam que havia morrido.

O vigário encontrou a velha parteira em correria pelo meio da rua, se benzendo, completamente desesperada, dizendo que naquela barriga só podia estar coisa ruim. Ouvindo isso, o pastor de almas achou melhor dar meia volta e só retornar no dia seguinte com todos os instrumentos apropriados para uma exorcização.

Ainda na noite desse dia, não suportando mais o saco de pancadas que estava sua barriga e aquela voz dizendo que já estava chegando a hora, a pobre mãe pediu para que preparassem um chá bem forte de ervas expulsadeiras. Deixou repousando no umbral da janela para beber na manhã seguinte.

Antes do amanhecer cutucou o marido pedindo por tudo na vida que fosse buscar o chá. Bebeu tudo como se estivesse com a maior sede do mundo de se ver logo livre daquele sofrimento. O chá era tão forte que em um minuto ouviu um barulho de vômito dentro da barriga e a voz perguntando que porra era aquela. E em seguida disse que ia sair dali no mesmo instante.

A mulher gritou pro marido que a menina já ia nascer, mas este não fez outra coisa senão correr em direção à igreja, e depois à delegacia. Quando o padre entrou na casa já de cruz em punho, sua mão fraquejou diante daquilo que avistou: a mãe adormecida tendo ao lado um lindo bebê. Mas era de plástico, pois a verdadeira criança estava por trás com um pedaço de pau para acertá-lo na cabeça.

Assim que ia dar a cacetada recebeu voz de prisão. Teje presa em nome da lei, disse o senhor delegado. Você vai prender uma criança seu delega, disse a recém-nascida enquanto corria para os seus braços. Espantado, a autoridade policial outra coisa não fez senão tentar acariciá-la. Mas não conseguiu, pois já havia sido devidamente algemado com seu próprio instrumento de trabalho.

Em seguida, retirando a arma, empunhou esta em direção ao vigário e disse que naquele mesmo instante lhe ensinasse a ser criança. Então o velho vigário rolou pelo chão, fez careta, gritou, chorou, brincou de tudo que foi jeito, e depois adormeceu ali mesmo no chão, feito criança cansada.

Mas ela não achava graça nenhuma daquilo. O mundo era feio, as pessoas tão feias, aquelas brincadeiras sem graça, tudo ruim demais de continuar assim. Então deu adeus aos pais, jogou ao chão a arma e a chave da algema, e foi engatinhando até a porta. Depois levantou, abriu e saiu.

No mesmo instante, da janela, os pais e o  senhor delegado avistaram a menina já crescida e caminhando pela estrada. Quando virou a curva já estava moça feita, adulta. Enquanto isso o vigário sonhava que a vida, o mundo, tudo, não passa de uma imensa fantasia, uma estória sem pé nem cabeça.

(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.  

Poeta e cronista
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