Por: Rangel Alves da Costa (*)
A
REVOLTA DA CACHAÇA
Já próximo ao
meio-dia de mais um dia sertanejo, momento preferido pelo caboclo para se
achegar ao pé do balcão para tomar uma talagada, a primeira de outras tantas,
eis que um cabra olhou pro pé de Miúdo e sentenciou de modo alarmante:
“O mocotó do
pé tá inchado e é de cachaça, conheço de longe. Mas pinga da boa não deixa
ninguém assim não, de jeito nenhum, somente quando ela é aguada. Miúdo foi
enganado, serviram a ele cachaça batizada, misturada com água. Você lembra onde
pode ter bebido a pinga assim, Miúdo?”.
Espantado, o
pobre do Miúdo não sabia nem o que responder. Estava realmente sentindo uma
inchação diferente na curvatura dos pés, mas sem doer deixava pra lá. Contudo,
o problema era saber onde tinha sido enganado pelo bodegueiro, vez que bebia em
toda birosca que encontrava.
Diante do
noticiado e já estando a birosca repleta de cabra pedindo uma e mais uma, logo
Zefio tomou a palavra e pedindo um instantinho de atenção começou a falar, mas
logicamente depois de virar mais uma talagada de umburana adormecida por três
dias:
“Isso que
fizeram com Miúdo é muito grave e não pode ficar assim não. Se o safado do
vendeirim fez isso com ele, misturando água na pinga por debaixo do balcão,
pode muito bem fazer o mesmo com qualquer um de nós. E se a gente não procurar
saber logo quem foi esse dono de botequim safado, mais tarde todo mundo pode
aparecer de pé inchado. Por isso acho melhor a gente começar agora mesmo
procurar quem fez isso. E isso a gente só vai saber indo de boteco em boteco”.
A cada palavra
de Zefio os ânimos ficavam cada vez mais exaltados entre todos. Talvez por
causa das doses já viradas gogó abaixo, mas a verdade é que prometiam não
deixar barato aquilo de jeito nenhum, pois não admitiam que um safado de um
vendeirim quisesse enganar uma classe tão respeitada como é a dos amigos de pé
de balcão, os honrados cachaceiros.
Um falou em ir
buscar uma espingarda antes de saírem, outro disse que bastava a faca peixeira
que já levava na cintura, já outro prometia quebrar tudo que encontrasse no
boteco onde fosse encontrada a maldita aguada. A coisa estava realmente feia,
uma revolta danada, coisa de se fazer guerra pra acabar mundo.
O dono do
boteco onde estavam, bicho matreiro e cheio de presepada, tremia dos pés à
cabeça ao ouvir aquelas deliberações. Olhando por baixo, um pouco afastado do
balcão, implorava em silêncio, rogava por tudo na vida que os revoltosos
saíssem logo dali e fossem à caça de culpado em outro lugar. Já pensou se
imaginam que ele estava batizando cachaça?
Mas tão
aperreado que estava, tomado de uma repentina dor de barriga de não acabar
mais, acabou fazendo o que jamais tinha feito na vida: ofereceu uma rodada da
boa como incentivo para que fossem logo investigar o caso da enganação e
castigar o culpado por aquela afronta descomunal aos adeptos da pinga.
Assim que a
turba revoltosa virou a pinga e saiu porta afora, o safado do bodegueiro correu
pra pegar uns litros cheios de cachaça que estavam estrategicamente colocados
debaixo do balcão. E virou por terra, na parte dos fundos do barraco, cada um
dos cinco litros. Depois, já aliviado, tomou uma dose de angico sem mistura e
disse a si mesmo que por pouco não havia sido descoberto enganando a clientela.
Enquanto isso,
já enveredando pelos becos do lugarejo, o grupo revoltoso seguia para dar
início à desenfreada procura pela cachaça maldita, pela pinga batizada, aquela
que era só beber e não demorar muito pro mocotó inchar. Assim, os indignados
entraram no primeiro boteco e experimentaram quase todo tipo de cachaça
misturada com raiz de pau. Comprovaram ser da boa e foram em frente.
E foram
passando de um a um, de boteco a birosca, e sempre bebendo, mas já sem qualquer
noção da qualidade da pinga. Já estavam bêbados, cambaleantes, trocando
palavras, e com um ou outro já tendo ficado devidamente adormecido pelos cantos
por onde estiveram. E nesse indescritível percurso o último bêbado ainda de pé
conseguiu retornar ao primeiro boteco onde tudo começou.
Lá dentro,
desprevenido, ao ver o cabra chegando com a cara mais que estranha, retorcida,
o safado vendeirim tomou um susto que quase bota os bofes pela boca. E
imediatamente pensou: É agora que vou morrer, pois descobriram que sou eu quem
batizava a pinga. E procurou um jeito a fazer. E o que lhe veio à mente foi
logo confessar tudo e pedir perdão, dizendo que nunca mais misturaria água na
cachaça nem com pedido de padre.
Assustado
demais, não percebendo que o outro estava totalmente bêbado, se ajoelhou,
contou tudo e só faltou chorar. Mas em seguida ouviu: “Não tenho mais um conto
no bolso, mas será que você poderia me servir uma dose, mesmo que venha
misturada com água?”
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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