Por: Rangel Alves da Costa(*)
RITUAL
DE AMORIMORTE
À meia-noite o
sino deu três badaladas e meia. Não sei por que dobrar três vezes e apenas a
metade de outra vez, nem como essa quebra pôde ser sentida. Mas a verdade é que
foi assim. Tinha de ser assim. Do contrário estaria quebrado o rito inicial no
grande templo da sacerdotisa.
Abrindo-se a
porta larga de mais de mil anos, segue-se por um corredor escurecido, com
aspecto misteriosamente sombrio, iluminado por duas pequenas e trêmulas chamas
de velas. Ao final, o olhar se abre para um imenso salão, não menos sombrio,
porém mais iluminado por candelabros. Tudo muito velho, antigo, na poeira dos
anos.
Ao centro, uma
mesa de madeira rústica com mais de dois mil anos, porém ainda intacta por
estar recoberta pelo verniz suado dos tempos. Bem no meio da mesa ovalada um
alguidar de barro com três folhas ainda verdejantes, tendo ao fundo uma espécie
de areia fina e aromática. Ao redor da vasilha de barro queimavam quatro
varetas de incenso: sândalo, benjoim, eucalipto, raiz de lágrima.

De repente a
escuridão se fez completa. Dois minutos após o sino dobrou por três vezes e
passos começaram a ser ouvidos. Das portas laterais surgiram quatro virgens
vestais trazendo cada uma um archote, tochas embebidas em resina, servindo as
quatro chamas para dar uma iluminação especialmente grandiosa ao ambiente.
Outra virgem
entrou no salão trazendo uma espécie de bacia grande, reluzente, certamente
banhada a ouro, e a colocou cuidadosamente ao lado da mesa, em cima de um baú
de mármore enegrecido. Feito isso, bateu levemente uma mão na outra e entrou no
salão uma mulher de formosura só comparável às deusas, de traços tão perfeitos
que eram. Era a sacerdotisa.
Coberta com
véus brancos esvoaçantes, feitos de tecidos que pareciam de brisa, ainda que
completamente vestida avistava-se sua pele brilhando sobre o corpo, suas
curvas, seu sexo desnudo. Num sinal, e a virgem serviçal tirou-lhe todas as
vestes. E completamente nua, sinalizou para que se retirasse e começou a entoar
uma canção muito triste.
Cantava sua
triste melodia, movendo apenas os lábios para o delirante ecoar de sua cantiga
de amorimorte. Mesmo ao longe se percebia que seus olhos lacrimejavam, que
chorava um pranto muito dolorido. De vez em quando, e fazia apenas isto,
voltava seu rosto para a bacia, momento em que lágrimas cintilantes eram
avistadas se derramando.
Quando parou
de cantar fez um gesto com a mão e a virgem retornou. Agora trazia ao seu lado
o mais belo dos jovens já nascido nas terras d’álém. Estava entristecido,
cabisbaixo, andando lentamente, mas quando levantou o rosto para olhar nos
olhos da mulher, as virgens vestais sufocaram gritos, quiseram correr em sua
direção para abraçá-lo e ali mesmo possuí-lo com desmedida volúpia.
Refreadas pelo
olhar repreensivo da sacerdotisa, baixaram a cabeça para o lacrimejar
escondido, sufocado, apaixonado. Em seguida, a bela e nua mulher mandou que sua
serva vestal deixasse o belo rapaz sem um fio de pano sobre o seu corpo. Nu,
disse ela, e tão belo quanto o espelho do corpo. E a virgem, de olhos fechados
para não ser tentada, arrancou-lhe todas as roupas.
De costas,
assim que ouviu da serva que já tinha feito o trabalho, que o rapaz estava
completamente desnudo, ao virar-se quis se atirar sobre ele, tomá-lo como seu
homem, naquele momento e para a eternidade. Porém sabia que não podia. Ao menos
não naquele momento. Então mandou que a vestal se retirasse e saiu por
instantes do imenso salão. Sabia que o encontraria ali quando retornasse.
De cima da
mais alta das torres, completamente nua, e falando o mais alto que podia, ainda
que nenhuma palavra dita saísse do seu próprio âmago, ela anunciou para que o
vento recolhesse e espalhasse aos quatro cantos sombrios:
“Eis o rito do
amor e da morte. A paixão não correspondida se transforma em vingança, em
insaciável busca de mortificar para o renascimento. E os deuses anunciaram, e
os deuses não negam, e assim deverá ser. O oráculo cantou a pedra e da voz da
sacerdotisa veio a sentença: o amor não correspondido é vida que deve morrer
para renascer. E todas as forças ocultas irão velar aquele formoso corpo e
prepará-lo com as três folhas: do retorno, do amor e da paixão. Assim foi dito,
e assim será”.
E enquanto
retornava trovões agitaram os céus. Um raio caiu em sua mão e se transformou
numa espada flamejante. E ao entrar no salão avistou seu amor ainda mais belo,
mais formoso, mais apaixonante. Porém feito estátua, mudo, imóvel. Somente
quando ela, não suportando, mais correu para abraçá-lo, ele agitou os braços
impedindo a aproximação.

E foi neste
momento que ela ergueu a espada e com golpe certeiro decepou-lhe a cabeça,
fazendo-a cair precisamente dentro da grande bacia dourada. Espantada,
amedrontada, porém sabendo que assim mesmo tinha de acontecer, recolheu as três
folhas do alguidar e jogou-as na bacia. Depois, em pé ao lado, começou a
chorar.
Eram tantas as
lágrimas, jorrando continuamente, que quando um raio de sol surgiu numa fresta
a bacia já transbordava. E ela incessantemente, cada vez mais triste a chorar.
E as águas foram além do salão, desceram os montes, formaram um rio. E até hoje
a pedra grande do rio chora seu amor impossível.
E chorará para
sempre, esperando o impossível retorno. Não sabendo, porém, que ele deságua
amorosamente no mar da mais bela ninfa, a divindade amorosa das águas.
Biografia do autor:
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em
"Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros
contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e
"Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada
sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão -
Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do
Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor:
Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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