Por Rangel Alves
da Costa*
Como diz a
música, eu que tinha tudo hoje estou mudo, estou mudado... Mas não porque
queira, e sim pela força do tempo.
Tempo este que
realisticamente pode ser chamado de idade. Nada mais delimita o ser humano que
a sua idade. Não adianta fingir, não adianta fugir. Quando os caminhos da
existência vão dobrando curvas, então os sinais surgirão por todo lugar.
A sorte é
continuar com memória, eis que a recordação surge como um alento ao bom e ao
bem da vida. E assim porque o passado merece sim ser recordado. O que está
escrito desde criança não pode ser apagado ao desvão do tempo.
E tanta coisa
boa há que se recordar. A saudade da professorinha, o conga de todo dia para ir
à escola, a fruta roubada no quintal vizinho, a bola de papel arremessada na
sala de aula, o bilhetinho amoroso deixado debaixo do caderno da vaidosa
menina.
Tantas coisas
boas acontecem quando se é jovem que superam quaisquer erros ou tristezas
havidos. Pensar em jardim da existência é avistar as flores da juventude e até
da meninice. Jardim e colibris, jardim e borboletas, jardim e perfume da
alegria, do prazer, da festança no coração, do contentamento da alma.
E como vivi!
Não entristeço agora porque vivi demais. Fui jovem em toda sua expressão, em
toda sua extensão, na dimensão maior sobre tudo. Nada me fará triste agora se
posso dizer que o prazer sentido na vida foi tamanho que nem restou um
lugarzinho para aflição futura.
Eu que namorei
a mais bela donzela. Num tempo tão difícil de beijar até no rosto, eis que um
dia beijei de língua, um dia experimentei o sabor daquele lábio molhado de mel.
Foi a coisa mais maravilhosa que pôde existir.
Ela, menina e
flor, frágil e perfumada, reticente que só, dizia que bastava segurar na sua
mão, e assim mesmo escondido. Se o seu irmão ao menos sonhasse que estava
namorando, logo correria para contar aos pais. E a surra estaria garantida
quando chegasse em casa.
O problema é
que eu achava que apenas segurar a mão era muito pouco, principalmente depois
do trabalho danado para ela dizer se aceitava ou não namorar comigo. Quase um
mês e mais de vinte bilhetes, cartinhas, beijos jogados no ar, nomes desenhados
nas nuvens.
Um dia roubei
uma porção de flores do jardim e logo cuidei de jogar um descuidado buquê pela
sua janela. Seguia um bilhetinho dizendo que se quisesse namorar comigo que
saísse até a praça levando uma florzinha à mão.
Aflito, meio
escondido por detrás do cruzeiro da pracinha, de repente avisto ela saindo de
casa. Lentamente caminhou em direção ao local, me avistou, fingiu que não viu,
e seguiu andando. Levava a florzinha à mão. Mais adiante olhou pra trás e
sorriu. Quase desmaiei. Ela havia aceitado namorar comigo.
Mas a
confirmação do namoro só depois de mais uns três ou quatro bilhetes. Precisava
encontrá-la. Na primeira vez que senti seu olhar diante do meu, que senti toda
aquela beleza quase rente ao meu corpo, quase não encontrei palavras para falar
qualquer coisa. Você é minha namorada, perguntei. Sou, ela respondeu.
O primeiro
beijo foi no rosto, quase um cheiro, um dengo de lábio. Quase não dormi depois
desse dia. No dia seguinte, em encontro às escondidas, arrisquei tocar o seu
lábio. Ela deixou. E beijei. Apenas lábio no lábio, como carícia de pele, e
numa sensação indescritível. Estremeci inteiro, esquentei, esfriei, corei, saí
um pouco de mim.
Beijar assim
era tão bom que jamais pensava em fazer diferente. Mas um dia alcancei sua
língua. Beijei a boca, a língua, o céu da boca, o que pude encontrar. Depois me
arrependi de ter acontecido assim. Bastava aquele beijo, lábio no lábio, leve,
macio, amoroso demais.
Recordo o
beijo de língua apenas por recordar. Mas jamais esquecerei a doçura de tocar
aquele lábio como a maciez de um sonho bom. Na estranha nuvem do contentamento
da alma.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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