Por Rangel Alves
da Costa*
Eu vi uma
serpente na rua, num calçadão de cidade grande, no principal centro comercial e
onde pessoas incessantemente caminham. Era uma cascavel de mais de dois metros
de comprimento e com um guizo em incansável chocalhar. E dizem que quando está
assim é porque está pronta para o ataque.
Não sei de
onde ela saiu, mas estava lá, se arrastando lentamente pelo calçadão. Contudo,
parece que eu fui o único a avistá-la. O que mais instiga é que era
praticamente impossível de uma venenosa daquelas, enorme, chocalhando sem parar
o seu guizo, roçando em calcanhares e pés por onde passava, e ninguém tivesse
se dado conta de sua presença.
A cobra imensa
entre as pessoas e estas simplesmente caminhando. Não só caminhando como
sentadas em bancos ao redor daquela inesperada e assustadora visitante. Mas
como o povo iria temer, como iria se assustar, gritar, correr, fugir, se sequer
dava a mínima atenção à sua presença? A não ser que de repente ela se lançasse
num daqueles calcanhares e agulhasse seu veneno mortal.
Já vi tudo –
ou quase tudo – naquele principal calçadão do centro da capital. Já vi gente
tirar toda a roupa por não suportar o calor, já vi profeta prometendo o fim do
mundo a cada dia, já vi homem estátua adormecer em cima de tamborete em pleno
sol do meio-dia, já vi falso doente esmolando pelas esquinas, já vi cego de porta
de igreja rejeitar moeda de baixo valor. Mas cobra, e principalmente uma
cascavel, nunca havia tido o desprazer de encontrar.
Fico
imaginando de onde ela pode ter surgido. Certifiquei-me e não havia nenhum
circo pelos arredores, não havia mata nas proximidades de onde ela pudesse ter
ido além, não havia escombros de construções de onde pudesse aparecer e seguir
em busca de outro esconderijo. Também difícil que tivesse saído das águas do
rio mais adiante. Será que alguém a levou em algum saco e permitiu que ela
saísse em pleno centro comercial da cidade? Improvável que tenha acontecido
assim.
Mas ela estava
lá. Lenta, volumosa, porém barulhenta no seu chocalho ameaçador. Cabeça enorme,
achatada, duas presas enormes e afiadas, um perigo ambulante. Bastava uma
mordida e o sujeito morreria roxeado, sem respirar. O veneno logo lhe tomaria
as entranhas e não haveria tempo nem de um socorro. E tanta gente correndo
perigo, pois dezenas, centenas de pés passando lado a lado, quase pisando na
própria morte. Realmente não sei como muitos não lançaram seus solados ou esbarraram
seus pés bem à ponta das venenosas agulhas. Somente um milagre.
Que cena
indescritível, a cobra no seu estranho mundo e eu sendo o único ser a
percebê-la naquele passeio. Sentado num banco, outra coisa eu não fazia senão
mirá-la em cada rastejo. Eu estava tão entretido com ela que se um elefante
surgisse não daria a mínima atenção. Por falar em elefante, creio que uns dois
ou três passaram por ali também. As pisadas eram tão fortes que o chão chegava
a estremecer. E certamente também passaram onças, tatus, girafas, lobos,
raposas, porco-espinho.
Ainda que
todos os animais da floresta ali passassem, assustassem, ameaçassem, a verdade
é que ninguém se importaria. O ser humano não se importa mais com nada, a não
ser com a própria vida, e quando muito. O homem não se preocupa mais nem com o
perigo nem com ameaça, nem com a tempestade nem com o vendaval. Não era assim,
pois até mesmo a brisa lhe era sentida, mas depois foi se tornando insensível,
petrificado, indiferente de tudo. Apenas segue, apenas vai adiante como um ser
sozinho na multidão.
Se a
indiferença também faz o homem cegar, talvez seja esta a explicação para que
não avistassem a cobra. Mas por que eu, tão humano quanto os demais, pude
avistá-la o tempo inteiro? Simplesmente porque ela não existia. Não havia
cascavel alguma naquele calçadão, solta ao redor das pessoas. Talvez num
instante de afastamento da realidade, simplesmente eu humanizei o mundo através
de uma cobra inexistente.
Em devaneio,
imaginei que ao menos diante do perigo o homem procuraria se proteger. A cobra
inexistente sumiu, mas ainda hoje sento àquele mesmo banco esperando o seu
retorno. Mas só passa gente, só passa ser humano. E quanta frieza, quanta
impassibilidade, quanta indiferença.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Se você gosta de ler histórias sobre "Cangaço" clique no link abaixo:
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário