Por Rangel Alves
da Costa*
Abrir a porta
de trás e não encontrar um quintal é o mesmo que abrir a janela ao alvorecer e
não encontrar a manhã. Como dizia o Velho Totonho, triste da casa onde não há
fogão de lenha, porrão para guardar água de chuva e um cercadinho ao fundo
servindo para os pequenos afazeres da vida. E dizia mais: Quando a porta da
frente nem sempre se abre pra coisa boa, só resta ao homem buscar depois da
porta do fundo, na singeleza do quintal, a felicidade perante as pequenas
coisas.
Certamente que
o Velho Totonho ainda conviveu com o esplendoroso tempo dos quintais.
Esplendoroso por que um tempo onde bastava abrir a porta dos fundos e botar o
pé na terra solta para encontrar muito além de um simples cercado. Ali a planta
de chá, de cura de muitas enfermidades, verdadeira farmácia verde e com poder
de cura garantida. Nos idos de ausência de médico, posto de saúde e farmácia,
só mesmo a medicina de quintal para garantir a sobrevivência de muitos.
Raramente não havia um cercadinho, ou mesmo se misturando às outras plantas,
destinado ao mastruço, ao boldo, hortelã, arruda, agrião, manjericão e
carqueja, dentre tantas outras para o chá, o xarope, a maceração, a mistura
certeira vinda dos ancestrais.
É no quintal
que a mulher cultiva suas plantas ornamentais para enfeitar a casa em dias de
festa, de visita importante ou simplesmente quando resolve dar um aspecto de
zelo e beleza aos ambientes. Não importa se em latas abertas e cheias de areia,
caqueiros ou xaxins, pois sempre um florido muitas vezes contrastando com a
secura da natureza ao redor. Mas há um cuidado especial para ser assim. Mesmo
em tempo de seca braba, onde até o pote está pela metade ou já no barro do
fundo, ainda assim se aproveita qualquer restinho de água para aguar aquele
pequeno jardim ao amanhecer e logo após o pôr do sol. Daí rosas sertanejas,
bromélias, cactos floridos, lírios, begônias, samambaias, hortênsias, enfim, um
jardim inusitado onde em época de estiagem só costuma florescer a catingueira,
a craibeira e o mandacaru. Sim, mandacaru tem flor, e que bela flor é a do
mandacaru!
No mundo
sertanejo, não há alvorecer sem o primeiro abraço ao quintal. O dono da casa
desperta ainda na madrugada e não abre a porta da frente sem que antes abra a
porta de trás. É neste ambiente rústico que toma as primeiras providências do
dia, passando o olhar pelo galinheiro, ajeitando um pé de cerca, colhendo uma
fruta madura, recolhendo algum ovo que a poedeira não se esqueceu de botar.
Junta a lenha do fogão porque já ouve a esposa mexendo nas panelas da cozinha.
Ela também acorda cedo, mas antes de começar os ofícios do dia tem de lançar mão
ao rosário e se ajoelhar perante o velho oratório. Há sempre de ser assim, a
disposição na vida acrescida de fé incontida, pois não haverá despertar, manhã
e dia sem que as santidades e os anjos permitam um percurso esperançoso e
feliz.
No passado, os
quintais geralmente divisavam com a mataria ao redor. Depois do quintal,
cercado ou não, já começavam os tufos de mato, as catingueiras, as aroeiras, os
mandacarus e xiquexiques, os lajedos, as locas e caminhos para a bicharada. Por
isso mesmo que de vez em quando preás eram avistados ao redor das plantas
caseiras, passarinhos de toda espécie chegavam para cantar no alto das árvores
frutíferas, as visitas inesperadas entravam cozinha adentro. A cobra, bicho
afoito, sorrateiro, só era avistada quando já estava se enrodilhando ao pé do
pote. Daí a necessidade de um bom cachorro guardando o quintal e também a
limpeza dos velames e outras plantas rasteiras que gostam de se espalhar por
todo lugar.
Ali no quintal
no tronco do quintal o caçador estende seu aió ou embornal na volta da caçada
do dia. Talvez uma nambu, uma codorna, ou caça maior, comida de panela,
providência tão necessária à subsistência familiar. A mulher ecoa uma velha
canção enquanto prepara a água para despenar a caça que mais tarde estará sobre
a mesa. Também canta enquanto varre pelos arredores, joga cuia d’água nas
plantas, estende a roupa no varal. A roupa lava mais adiante, no riachinho que
ainda empoça alguma água. Depois retorna com o cesto de roupa na cabeça para
estender no quintal. Quando não canta, coloca o radinho de pilha em cima de um
tamborete, deixa tudo estendido e retorna à cozinha para uma coisa e outra.
Realmente não
sei como a família moderna vive sem quintal. Sim, quintais ainda existem, mas
não com a significação e importância de outros tempos. O que geralmente se tem
hoje são muros de chão cimentado e sem nada que faça lembra-lo como um espaço
de natureza. Não há mangueira, goiabeira, mamoeiro, nada. Não há um cantinho
para um cultivo medicinal nem mesmo vasos e caqueiros com plantas de enfeite.
Apenas um varal solitário e triste, aonde as roupas estendidas vão secando pelo
mormaço. Não há brisa, não há ventania, não a voz matuta entoando seu prazer
pela vida, como criança no seu mundo encantado: “A rosa vermelha é do bem querer,
a rosa vermelha e branca hei de amar até morrer...”.
Poeta e
cronista
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