Por Rangel Alves
da Costa*
O mito e o
místico numa só pessoa. O lendário e o temente num único ser humano. O
emblemático e o espiritualizado no mesmo cidadão. Assim era Virgulino da Silva,
assim era Lampião, mas sempre considerando que aquele se contrapôs a este em
muitos aspectos, e este clamou para ser o outro em muitas situações. E assim
por que em muitos momentos Lampião quis ser apenas Virgulino. E também em
muitos instantes este se despiu de muitos sentimentos para dar impulso ao
Lampião.
Poucos foram
os viventes que alcançaram tanto a mítica como o místico. Não é qualquer um que
ao longo dos anos – e muito tempo depois de sua morte - vai aumentando o
reconhecimento e a admiração ao redor de seu nome, ainda que o conceito de
alguns seja pela negação de sua conduta. Igualmente difícil ao ser humano ter
construído sua história em meio a lutas sangrentas e mais tarde ter valorizado
seu lado que não foi desumanizado pelos ódios derramados a cada passo. E
Lampião, que se aceite ou não, transformou-se num mito, cujo elemento mítico ou
místico, de cunho religioso, esteve presente no Virgulino até o último sopro de
vida.
Contudo, urge
que se esboce uma ligeira noção acerca do que os livros definem como mito e
como místico. O mito é uma representação simbólica produzida pela mente humana,
é a concepção de sobrenatural ou de força superior destinada ao endeusamento ou
à heroicização. É algo visto como fora da realidade, que é de difícil
explicação racional. Pode surgir de fatos ou acontecimentos históricos ou de
valores culturais enraizados no povo e transformados em lenda, em heroísmo, em
divinização. O passar dos anos tem o dom de aprofundar mais ainda a concepção
mítica do herói mentalmente firmado.
Por sua vez, o
termo místico tem um sentido religioso, de espiritualidade e devotamento, de
acatamento e prática de determinados ritos de fé. O ser místico é aquele levado
ao misticismo, cujas crenças pessoais acerca dos poderes divinos o tornam
adepto de determinados preceitos religiosos. O místico geralmente é um ser
contemplativo, de robusta devoção, demasiado crente nas forças e poderes
divinos, alguém que sempre invoca proteção superior. E os relatos demonstram
Virgulino Ferreira da Silva como um homem profundamente religioso e com rituais
próprios de veneração a Deus, santos e anjos.
No caso
específico do cangaceiro de Vila Bela, o mito e o místico possuem fronteiras
precisas, limites reconhecíveis. O mito está em Lampião, no maior dos
cangaceiros entre todos já existentes nas terras nordestinas, no líder hábil e
inteligente, no estrategista que fazia de um rochedo ou de tufo de mato um
campo impenetrável de guerra. Mito este criado a partir do desempenho do bando
sob sua liderança, do poder de arregimentação, do círculo de poderosas amizades
que soube tecer, do seu reconhecimento e até veneração por todo o mundo
sertanejo e citadino.
Mito também
pela história que construiu. Ora, ninguém se torna fenômeno por um fato ou
outro na sua passagem terrena, mas sim pelo percurso de luta, bravura,
destemor, enfrentamento dos poderes então constituídos. Ou será negada a
Lampião sua valentia na luta contra a opressão sertaneja que chamou para si?
Será que vale a pena desmitificar ou simplesmente desconhecer a história de um
homem de pouco estudo, de família humilde, arribado de casa desde ainda moço, e
que construiu um império de bravura ao seu redor? Quantos sertanejos fizeram, a
partir da caatinga, estremecer as estruturas do poder coronelista, patriarcal,
impiedoso? E foi tão perseguido porque representava a força do sertanejo ante a
tirania do Estado. Assim foi sendo construído o mito Lampião.
Ao lado do
mito, o hoje reconhecido misticismo no ser humano batizado como Virgulino
Ferreira da Silva, no homem lutando sobre a terra e temendo e devotamente se
apegando às forças do céu. Levava consigo armas, munição, instrumentos de
guerra. Mas também rosários, imagens sacras, instrumentos de devoção. Quando as
balas silenciavam e os gritos de horror se calavam, quando o tempo de guerra
fingia um tempo de paz, então o Capitão se voltava para si mesmo, para
reacender as chamas de fé que levava consigo. Meditava sobre sua situação de
vida, intimamente se afligia, mas procurava na oração e nos rogos aos seres
celestiais o fortalecimento espiritual e a proteção desejada.
Os relatos de
hoje revelam o fervor religioso de Virgulino, o seu máximo respeito às coisas
sagradas, o seu profundo senso de devoção. Rezava todos os dias e levava
consigo algumas orações, principalmente para manter o corpo fechado. Tinha
devoção especial por Padre Cícero, a quem tinha como verdadeiro santo
nordestino. Não admitia que cangaceiro de seu bando menosprezasse as coisas
sagradas e tinha predileção especial por Santa Luzia e São Jorge. Uma para dar
esperança de visão ao seu olho sem luz, e o outro por ser guerreiro.
Parece ser
contraditória tanta religiosidade naquele que pouco tempo teve para viver senão
para guerrear. Mas assim aconteceu. E coisas assim somente acontecem com quem
um dia nasceu para ser mito.
Poeta e
cronista
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