Por Rangel Alves da Costa*
Por mais duro e insensível que seja o homem, ainda assim não pode deixar de ouvir sua voz interior. Até que não ouça nem considere qualquer pessoa no mundo, mas não pode fugir de dar atenção ao que dentro de si atormenta querendo falar. Pode haver silêncio na boca e indiferença a tudo, porém sempre estará ouvindo os gritos nos seus labirintos.
De tudo faz para ir procrastinando o pensamento, a dura reflexão. Foge como pode das realidades internas. Anda de canto a outro tentando enganar a si mesmo, ao que lá dentro alvoroça, mas não tem jeito. Sua feição carrancuda, seu olhar de pedra, seu gesto temeroso, tudo se dobra ao íntimo que apavora. Quem avista o homem imponente, poderoso, parecendo inatingível, sequer imagina os monstros que enfrenta e tem de combater.
Lança o olhar nas distâncias, avista apenas o início de sua imensidão de terras, e nem assim se contenta. Mira a boiada, o pasto cheio de animais, o curral apinhado de vaca e de boi, mas nada lhe traz felicidade. Sob o céu, nos arredores de tudo, o seu reino e seu reinado, pois poderoso demais, porém nada que conforte a alma. É dono do mundo, de pessoas, de bichos, de quantias e mais quantias, porém apenas um atormentado, sofrido, amargurado.
Caminha sem hora marcada pelas terras e entre seus rebanhos, sobe em alazão para seguir mais longe, busca qualquer distração para o seu descontentamento na vida. A bebida desce-lhe na garganta sem qualquer gosto ou queimor, a comida não lhe satisfaz, a mocinha filha do humilde trabalhador não provoca mais nenhum desejo safado. Não se anima mais como antigamente para nada. Distraía-se açoitando lombo de gente, ferroando a vida do subjugado, mandando descer a chibata sobre as costas indefesas, cuspindo na cara de um, esbofeteando o rosto de outro.
Troteando pelos seus latifúndios no seu alazão, bastava avistar menina nova nos arredores e arrastava-a para a mataria onde, em desmedida selvageria, fazia sangrar o corpo virginal da inocente. Depois mandava entregar dois contos de réis ao pai e a ordem para calar o bico. Se gostasse da carne nova, então voltava mais vezes para satisfazer seus instintos cruéis. As mocinhas sabiam que não adiantava fugir, implorar, gritar, chorar. Nada adiantava nas mãos do coronel. Tinham de se submeter à sua degeneração. Mas nem isso o coronel fazia mais. Desde meses que não derrubava a inocência em cama de capim.
Os jagunços desconfiavam que algo andava muito errado com o patrão. O capataz principal silenciosamente jurava que o homem estava doente, só podia ser. Não dava mais cusparada ordenando que se fizesse isso ou aquilo naquele mesmo instante e que voltasse com o resultado antes de o cuspe secar. E o mais grave: não sentenciava mais ninguém à morte. Desde mais de três meses que não mandava tocaiar inimigos criados na sua imaginação doentia. Desde esse tempo que os seus matadores não retornavam das emboscadas com os troféus de morte, principalmente orelhas e braços ensanguentados.
Do jeito que a coisa andava, sem nenhuma maldade que atiçasse os ânimos, a jagunçada até temia que algum coronel atacasse e não tivesse resposta à altura. A coisa estava de um jeito que quando um dos jagunços foi avisar ao patrão que um matador a mando do inimigo havia sido avistado pelos arredores, e por isso mesmo enterrado vivo, o homem se mostrou de modo surpreendente. Nada disse. Simplesmente baixou a cabeça e sentou, lacrimejando, na sua cadeira de balança de varanda.
Os olhos molhados logo passaram a mirar um espelho inevitável. E a voz interior dizendo: Quem já fez o que você já fez não tem medo de se olhar. Então se olhe no seu espelho, aviste-se. Não consegue enxergar seu rosto medonho, sua feição animalesca, sua tez brutal? Sei que avista somente sangue, morte, violência, sofrimento, meninas sendo violadas, pobres sendo torturados, inocentes tombando pelas armas de seus jagunços, um festim de terror e medo. Mas eis o seu retrato. Aviste-se no que você fez. O seu retrato é apenas isso que vê no espelho. Você não é outro senão a morte, a dor, o sofrimento.
E os olhos lacrimejantes do coronel pareciam petrificados diante do espelho de sua atribulada alma, de sua atormentada consciência. E assim permaneceu até a morte chegar e levá-lo da vida para dentro do espelho. E lá dentro eternizar-se no sofrimento.
Poeta e cronista
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