quinta-feira, 18 de junho de 2015

NO CHÃO DE MINHA TERRA

Por Rangel Alves da Costa*

A minha terra é retrato na parede, é imagem no pensamento, é visão seja onde eu estiver, é recordação, é saudade. Como o exilado que sofre por estar ausente, como o viajante que não pensa noutra coisa senão retornar, assim vivo eu no padecimento dos dias. Há, entre a tristeza e a alegria, apenas uma estrada como separação, mas que precisa ser caminhada para o reencontro com o sol maior e a lua mais bela, a desolação e a grandeza da vida.

Não há angústia maior que viver com saudade do berço de nascimento, do sertão amado. E logo me vem à memória “Saudade de minha terra”, hino sertanejo de Belmonte e Goiá: “De que me adianta viver na cidade se a felicidade não me acompanhar, adeus paulistinha do meu coração lá pro meu sertão eu quero voltar, ver a madrugada, quando a passarada fazendo alvorada começa a cantar, com satisfação arreio o burrão cortando estradão saio a galopar. E vou escutando o gado berrando, sabiá cantando no jequitibá...”.

Sei que o sertão está ficando diferente a cada dia. A pujança sertaneja de outrora vem sendo diminuída de modo aviltante. Além dos modismos que vão descaracterizando a vida sertaneja, relegando ao esquecimento a cultura e as tradições, os vícios urbanos também se arvoraram do direito de devorar a singeleza de um povo. Desde a música aos costumes, tudo parece um lugar qualquer que não o sertão.

A bem dizer, do sertão em si só resta a ideia de sertão criada pelo sulista, o conceito geográfico remetendo a aridez permeada de cactáceas e períodos de grandes estiagens, e a história quando desencavada por algum interessado pelo passado. Na maior parte, apenas isto. O sertanejo em si está muito modernizado. Dificilmente se encontra uma moradia com candeeiro e fogão de lenha. Também quase não se utiliza mais bicho de montaria, pois tudo agora é no lombo da moto. O grito do aboio deu lugar à voz inteligível ao celular.

Não há mais o sertão de vizinhanças, de amigos conversando debaixo dos pés de paus sombreados, das cadeiras nas calçadas aproveitando a aragem do tempo e a moldura enluarada. A autenticidade do sertanejo foi sendo transformada num qualquer de qualquer lugar. Lógico que o novo sempre tende a modificar a vida e as manifestações próprias de cada povo, mas não de modo tão voraz e assustador. Somente a história para preservar os resquícios do sertão de Lampião, do Conselheiro, do Padre Cícero, de Luiz Gonzaga e tantos outros que o inscreveram nas páginas da eternidade.


Difícil dizer, mas, em muitos aspectos, a terra sertaneja está totalmente irreconhecível. Nunca foi própria daquela região a violência que não a justificada pela desfeita, a disseminação das drogas, as perversidades que são cometidas nos quatro cantos. Ninguém tem mais paz, sossego ou segurança. Ora, o sertão sequer é mais do sertanejo. Basta observar quantos forasteiros se instalaram por lá e quantas famílias autênticas ainda estão enraizadas naqueles quadrantes.

É triste ter um sertão que impiedosamente padece pelas mãos da incúria, da violência, do desconhecido que chega e vai transformando toda a feição do lugar. Pelas mãos dos forasteiros é que toda vida sertaneja é destroçada. Sempre houve o problema das secas, da fome e sede e sofrimento, das dificuldades de sobrevivência, mas o próprio sertanejo sempre soube superar as dificuldades. Havia mata fechada, catingueira por todo lugar, caça, fruta nativa, mata ciliar, riacho, tudo. Mas tudo isso acabou pelas mãos forasteiras.

Tudo na vida é consequência do feito, principalmente – e infelizmente - do malfeito. O simples ato de derrubar a mata sertaneja sob a desculpa de plantar para colher, outra coisa não fez o forasteiro que não devastar toda a vida da região. Sem mata não há passarinho, não há ninho de passarinho, não há bicho do mato, não há caça, não há nada mais que possa afastar a fome numa seca maior. Além do que o autêntico sertanejo ficou sem o seu ganha pão no trabalho com a terra. Por consequência, o que se tem hoje é uma legião de desempregados e desesperançados.

Mesmo não estando cortando suas veredas desde o amanhecer, andando pelos seus caminhos como sempre faço assim que chego por lá, tal situação acaba me causando um terrível sofrimento. Não posso admitir que o meu sertão seja tratado dessa forma por seus próprios filhos, forasteiros ou quem quer que seja. Ali a história maior, a incansável luta de um povo para ser reconhecido e respeitado, uma terra de pífanos, aboios, vaquejadas, forró, de uma fé e religiosidade indescritíveis. Há, pois, que se respeitar o sertão.

Certamente que a feição sertaneja jamais será restituída no que fez brotar de melhor. Impossível voltar no tempo e não permitir que as raízes que sustentavam um jeito tão próprio de ser e viver sejam arrancadas. O enfrentamento agora é perante o futuro. Ou se preserva o que ainda resta de história e cultura ou mais tarde nem mesmo os sertanejos conhecerão vestígios de seu passado. E uma terra sem tradição tende a ser lugar de nada e de ninguém. Ou um cemitério dos tempos.

Poeta e cronista
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