quarta-feira, 10 de junho de 2015

MEMÓRIA DE TUDO

Por Rangel Alves da Costa*

Apenas um jarro com flores de plástico, desde muito envelhecidas. Não há mais aroma ou encanto pelo viço perfumado das flores matinais, somente a poeira do tempo se encrustando na rosa feia. Um jardim de um dia transformado na mais morta das naturezas.

O espelho é cúmplice de tudo, também envelhecido e sem brilho no olhar, apenas um reflexo amarelado e turvo, disforme e triste. O tempo faz sofrer até o espelho. O que refletir se o que se mostra adiante já não sorri, já não mostra contentamento, não transmite ao outro lado a magia da jovial felicidade?

E era um tempo de mocidade, de beleza na face e no olhar, de madeixas delineadas à mão, de dedos correndo cores pelos lábios, de mãos retocando o ruge no rosto. Vaidade boa, beleza suave e terna, primavera em plena manhã de sol. E o espelho a tudo compartilhando, também se sentindo cheio de vivacidade.

Não recorda se marcou encontro para mais tarde com os cabelos esbranquiçados, as rugas pontuando na face, o olhar perdendo o brilho, o sorriso perdendo o encanto, o desalento tomando o lugar da ternura e do sonho. Não relembra se algum dia pediu ao espelho para ser tão melancolicamente realista. E numa realidade que dói pela recordação do retrato de outrora e da imagem que se mostra agora.

Tempos, tempos. Além da poeira a tempestade. E como dói a memória de tudo. Um baú onde se preserva por amor e prazer, mas com o passar dos anos vai se tornando em algoz dos sentimentos. Tudo guardado para ser conservado, mas também tudo reencontrado para a tristeza e o padecimento. Cartas, fotografias, escritos solenes, bilhetes cúmplices, pingentes, relíquias. Tudo já tão velho e tão presente na saudade.


Viver impõe o prazer e a dor, a alegria e o sofrimento. Há um tempo somente de coisas boas, de encontros e encantamentos. São tais instantes que mais tarde se transformam em dor de saudade. Há outro tempo na vida onde se olha pra trás e percebe que já andou demais para retornar em busca de um acalanto. Daí em diante apenas uma flor ou outra encontrada na estrada para que o coração seja reconfortado. Mas os espinhos superam tudo.

Vida, vida, uma relíquia esquecida no ontem e que o tempo não permite que se volte para reencontrar. Talvez a vida seja como a janela que recebe a bela moça com suas tranças negras ondulando ao vento, seu bonito vestido de chita, sua flor no cabelo, seu perfume de flor do campo, sua doçura da idade e de prazer pela vida. Mas depois a mesma janela começa a ficar sozinha, sem ninguém que se encoste ao seu umbral, até o dia em que apenas a ventania açoita sua madeira num vai e vem torturante.

Ali da janela avista-se a natureza pujante ao redor. Ou seria a vida? Flores, plantas, árvores, pássaros, borboletas, colibris, frutos adoçados de mel, brisa chegando com canção e perfume. Ou seria a mocidade? Mas também ali da janela a paisagem cinzenta, as flores murchas, as folhas mortas, a ventania espalhando tudo, a tristeza em profusão. Ou seria a idade avançando, o tempo passando, o outono da vida?

Difícil entender porque acontece assim, mas o hoje só é devidamente valorizado amanhã, e principalmente quando deixou para trás um não acontecido. As pessoas não aproveitam seus instantes e querem ter de volta o que já passou. Então o tempo presente, aquele vivenciado no ponteiro do relógio, acaba se tornando a memória de tudo. E tudo que é buscado na saudade sempre chega com sofrimento.

Por isso que o ser humano caminha pelo passo de ontem. Nada há de novo debaixo do sol. A feição de hoje já está como retrato na parede, o que fale ou pense já foi escrito num livro antigo. Assim com o jovem, assim com o adulto. Mas não assim com o velho. Este está somente no espelho. Ou no que os olhos consigam avistar e o vidro também definhado consiga refletir.

Poeta e cronista
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