segunda-feira, 15 de junho de 2015

“ESTADO DE S. PAULO” – NOVEMBRO DE 1917 UM PASSEIO A PAULO AFONSO

Por Antonio Corrêa Sobrinho

Amigos,

o texto a seguir foi escrito pelo jornalista Oliveira Lima, do jornal “Estado de São Paulo”, em setembro de 1917, poucos dias antes da trágica morte do extraordinário industrial Delmiro Augusto da Cruz Gouveia, ocorrida no dia 10 de outubro deste 1917, tendo este importante diário feito publicado, em quatro capítulos, em três das suas edições de novembro, e que aqui o apresento reunidos.



Trata-se, no meu entender, de um dos mais interessantes trabalhos que li ultimamente, eis que rico de literatura e de conteúdo histórico, sobre o nosso Nordeste de então, contextualizando-o a partir de um olhar sensível e profundo sobre a Cachoeira de Paulo Afonso, o sertanejo, o grande Delmiro Gouveia e a sua Pedra. 

Recomendo a todos, portanto, a sua completa leitura, ainda que seja apenas para sabermos que existiu no Nordeste um homem chamado Delmiro Gouveia.

“ESTADO DE S. PAULO” – NOVEMBRO DE 1917
UM PASSEIO A PAULO AFONSO

Oliveira Lima, Parnamirim, setembro de 1917.

A todo brasileiro é familiar, desde seus tenros anos, o nome de Paulo Afonso. A cachoeira famosa, cantada pelos versos sonoros de Castro Alves.

“As garras do centauro em paroxismo
Raspando os flancos dos parcéis sangrentos.
Relutantes na dor de cataclismo
Os braços de gigante suarentos,
Aguentando a ranger (espanto! assombro!).”

O rio inteiro, que lhe cai no ombro, é um dos brasões da nossa heráldica geográfica. Representa para nós o que o Niágara representa para os americanos que chamamos do norte – uma maravilha da Natureza, contida dentro dos confins políticos que Portugal fez brasileiros. Representa por isso de fato mais do que o Niágara para os americanos porque estes a dividem com os canadenses, ao passo que Paulo Afonso é puramente nacional: suas águas revoltas pertencem todas ao grande rio,
“Larga sucurujuba do infinito”, que é nosso das cabeceiras ao escoadouro; que encerra a tradição viva e a mais brilhante deste mundo legado pelo esforço dos nossos valores.

A cachoeira forma, além disso, uma poderosa reserva de riqueza; é um dos grandes mananciais de abundância e uma das condições essenciais do desenvolvimento futuro dessas terras que a perder de vista se estendem de um e de outro lado da “caudal gigante” que o poeta baiano crismou de Nilo brasileiro.

“As largas ipoeiras alagando”.

Suas cheias traduzem feracidade, e como mina de hulha branca ele corresponde a todas as ambições e deve exceder todas as esperanças.

A rara iniciativa de um patrício nosso cabem a honra e o mérito de ter iniciado o aproveitamento dessa fonte excepcional de energia e de progresso industrial. O nome do coronel Delmiro Gouveia de certo chegou ao Sul. Nos sertões do Norte é um dos poucos nomes que toda a gente conhece. Desde longos anos que ele conseguiu dar uma expansão enorme à exportação dos denominados “courinhos”, a saber, os couros de cabra empregados em tão larga escala no fabrico de calçado fino e de luvas, afora outras aplicações.

Os Estados Unidos são os grandes fregueses, os maiores compradores desse artigo cujo contingente está longe de ser insignificante para a economia do país. Este ano os embarques do coronel Delmiro Gouveia já ascendem a três milhões de peles, representando um valor de alguns milhares de contos de réis. Na grande plutocracia americana, onde os reis do comércio tomaram o lugar dos reis da história, com mais poder do que estes, ele seria o rei dos courinhos, como Rockefeller é o rei do petróleo, Schwab é o rei do aço, Leiter foi o rei do trigo e Havemeyer o rei do açúcar.

Ao seu gênio mercantil, feito de previsão e de operosidade, não bastou, porém, tal realeza, e a última criação do seu cérebro foi a grande fábrica de linhas da Pedra, a 25 quilômetros da cachoeira que lhe fornece a força inesgotável da sua queda. Há cinco anos que se começou a rasgar através do sertão a estrada de rodagem que liga Pedra, estação da pequena linha de ferro federal que de Piranhas a Jatobá contorna a cachoeira, ao reservatório imenso de onde lhe vem a corrente pelos fios elétricos e a água pelos canos de aço. Há quatro anos que se começou a edificar a fábrica e há três que ela funciona. Há um ano que extensa estrada de rodagem, de 254 quilômetros, une Pedra, na fronteira ocidental das Alagoas com a Bahia, a Garanhuns, no estado de Pernambuco.

A água é a condição primordial e indispensável da vida do sertão. Todos sabem quanto é esta região climatericamente irregular, sujeita a secas que a assolam cruelmente, reduzindo os menores córregos ao seu leito de rochas e areia, as boiadas nédias e luzidas a raros espécimes sedentos e esqueléticos, a população a bandos esquálidos de retirantes. O dia da chagada da água do São Francisco à Pedra agreste foi por esse motivo um dia de festa popular.


Quatro chafarizes donde o líquido corre em farto jorro se levantam nas ruas da vila operária e dois açudes, sobre que voejam bandos de pássaros aquáticos, cortam com suas manchas azuis a monotonia do horizonte de um verde crespo que no verão se transforma em amarelo torrado. Um grande bananal, ou milharais viçosos, as touças de cana de açúcar emergindo airosas dentre a vegetação característica da zona sertaneja com a qual vieram a casar-se, denotam logo a mudança nas condições locais. Dois amplos jardins com lindas rosas e mil outras flores tornam a impressão a mais agradável.

O problema destas terras, não há que ver, é todo e é só irrigação. No dia em que elas forem regularmente supridas d’água, a sua feracidade igualará a da zona das matas. Esta verdade do senhor de La Palisse, o coronel Delmiro Gouveia foi, porém, quem a demonstrou praticamente, com o mais feliz êxito e em condições de economia que fazem possível uma tal solução.

Os governos construindo açudes de dezenas de milhares de contos tornam-na impossível, pois que a bancarrota seria a consequência necessária de uma série de empreendimentos assim custosos. O coronel Delmiro Gouveia, que lida com capitais particulares, seus e dos seus sócios, realizou toda a despesa de uma obra formidável abrangendo canalizações, usina e transmissão elétrica, estradas, montagem de fábrica com dispendiosos aparelhos, edificação de uma vila proletária, modelo, etc... com seis mil contos!

E convém desde logo notar que a fábrica não só possui maquinismos moderníssimos, como que é tamanha sua importância que emprega 1400 operários.

Se a empresa tivesse sido oficial, não teria sido disparate avaliar as despesas em cem mil contos. Ninguém deixa, porém, de imaginar acertadamente onde iria parar o sobre excedente.

Há um trecho de estrada no nosso sertão em que me dizem que a União já enterrou 500 contos: para a estrada de Garanhuns a Pedra o governo estadual de Alagoas concorreu com 65 contos e ela se acha em tráfego em excelentes condições.

É corrente dizer-se no Brasil que o país não possui base segura para nele se exercer com vantagem a iniciativa particular e que a seção de governo ainda terá por longo tempo que servir exclusivamente ao progresso nacional. O coronel Delmiro Gouveia veio mostrar praticamente ser errado o conceito e que, bem pelo contrário, a iniciativa particular consegue muito mais e muito melhor, contanto que seja deveras inciativa e não um arremedo de atividade.

Quando a atividade é genuína e de bom quilate; quando a impele uma inteligência aguda e compreensiva, os efeitos que dela podem decorrer são incomparáveis. O Brasil, se tivesse uma porção de homens com o golpe de vista mercantil e sobretudo com a força de vontade combinada com o espírito de domínio – o que os ingleses chamam o “grasp” – do coronel Delmiro Gouveia, seria uma nação manufatureira, a par de agrícola, e opulenta como a sonham os que dizemos atacados de megalomania. A matéria prima é boa no que diz respeito ao elemento de trabalho: aqui se o prova à saciedade, e se trata de uma população reputada das mais indolentes e desordeiras do Brasil. A fábrica da Pedra transformou-a de certo, pois que não há operariado mais habilidoso nem mais sossegado. Bastou que estivesse à sua frente um espírito dotado da faculdade de organização e ao qual não fosse alheio o sentimento humano.

Eu não sei o que mais me maravilhou neste passeio ao S. Francisco – se a cachoeira, se a organização social que está servindo de núcleo à fábrica da Pedra. Desconfio muito que foi a segunda. A cachoeira é estupenda: não impressiona talvez tanto como a do Niágara, porque o lençol de água que nesta se desprende é mais vasto porque é mais unido. O rio precipita-se de chofre de uma altura de 50 metros. Paulo Afonso é uma série de cachoeiras pelas quais as águas todas do S. Francisco se despencam aos borbotões numa diferença de nível de 80 e poucos metros. No terreno propriamente não há declive: o rio é que cavou essa garganta pela qual passa célere e com fragor, caindo das rochas sobre que se espraia em cachões.

Uma das quedas, a do Angiquinho, é a mais alta e no momento em que a vi – porque o seu aspecto varia com a cheia – constava de dois possantes jorros reunidos por uma espécie de véu de renda, num efeito parecido com o duma célebre cascata japonesa. Todos sabem que o Japão é o país das cascatas e que os japoneses as admiram com um sentimento estético que quase se pode dizer religioso. Quando o volume das águas é mais considerável, o lençol líquido cobre espumante toda a construção de gnaisse avermelhado, que se alteia desde o fundo da bacia onde as águas fervem como em enorme caldeirão. Então, a queda fragmentada por onde o rio desce atabalhoadamente a majestosa ladeira em que lajes negras afloram como degraus, saltando a caudal revolta de um para outro. Seu furor, que tão terrível se afigura, é porém de fácil acomodar: logo abaixo desse turbilhão as águas deslizam plácidas, como que cansadas de tanta agitação frenética.

Paulo Afonso é uma beleza inconsciente da natureza; a organização social da Pedra é porém o fruto deliberado de um plano levado a cabo com aparências de bonomia, no fundo com uma rara pertinácia. Não é demasiado louvor escrever a seu respeito que desde a organização das missões jesuíticas não comporta o Brasil exemplo igual de disciplina e de previdência postas ao serviço de um agudo senso psicológico. Com a diferença entretanto que os índios das reduções obedeciam passivamente, quase que ininteligentemente, ao passo que os operários da Pedra obedecem conscientemente. Compreendem o sistema a que estão sujeitos, e poucos são os que se lhe mostram rebeldes e lhe não fazem a abdicação voluntária das suas rebeldias.

Nunca supus, e com dificuldade o acreditaria se o não tivesse visto, que no alto sertão se encontrasse o que debalde se procuraria na zona açucareira ou mesmo nas capitais destes estados, num resultado devido simplesmente – um simplesmente que é tudo – ao empenho que um homem pôs em construir um edifício moral da solidez e do brilho de que me foi dado admirar.

Na vila operária reinam a ordem, o asseio e pode dizer-se o conforto. As casas são todas iguais para se não notar diferença nas posses dos que as ocupam. Cada quarteirão é ligado por um alpendre corrido, e cada habitação se compõe de quatro aposentos: salinha da frente, quarto de dormir, salinha de trás para as refeições, e cozinha. A mobília varia segundo os haveres dos moradores. Nalgumas vi mobílias austríacas; noutras apenas uma mesa, escabelos e baús. Em todas ou quase todas uma máquina de costura.

A renda é de 5$000 mensais; 3$000 mais pela luz. Quando os ocupantes são de três para cima e pelo menos três trabalham na fábrica – pai, mãe e algum filho – nada pagam, em luz, nem aluguel; apenas têm de comprar as lâmpadas que se consomem. A água não se acha canalizada para as casas, mas é abundantemente provida por quatro chafarizes situados nas ruas principais. Porque a vila tem as suas ruas – Rio Branco, Floriano Peixoto, Sete de Setembro, Treze de Maio, Rui Barbosa, e duas praças – Joaquim Nabuco e Martins Júnior.

Dois armazéns, nos quais se fornecem também os proprietários da fábrica, a título igual ao dos operários, pois pertencem eles a terceiros, sem interesse outro que o destes comerciantes, constituem uns Bom Marché em miniatura. Encontra-se nas suas prateleiras tudo quanto há à venda em Maceió e por preços razoáveis. Um dos referidos estabelecimentos tem um “stock” de mercadorias no valor de 150 contos. A farmácia tem 80 contos de medicamentos em depósito. Os operários recebem tratamento médico e têm jus a botica de graça, mediante pequena contribuição sobre os seus salários, a qual vai de 200 réis semanais, sobre os salários de 2$000 a 4$000; até 1$000 sobre os salários de 20$000 para cima; e de 2$500 mensais, sobre os salários de 40$ a 60$000, até 10$000 sobre os salários de 300$000 para cima. O médico, doutor Maciel, vence 1 conto de réis por mês e tem ordem de não poupar despesas para curar qualquer operário da fábrica.

Há um cirurgião dentista, e vários alfaiates. Todo o pessoal anda limpo e decente. Não vi, quer nas oficinas, quer na rua, um homem descalço ou de chinelos, uma mulher desgrenhada ou de dentes sujos. As operárias – são 800 – passam para o trabalho todas bem postas, com seus vestidos leves engomados, suas sombrinhas e seus aventais, brancos ou azuis segundo a faina a que se entregam; é de natureza conservar lhe limpo o traje e a não enodoá-lo. 

Nos bailes dominicais, sobre o “rink”, à luz dos fachos elétricos que fazem empalidecer o brilho das estrelas do límpido céu do sertão, concede-se semanalmente um prêmio à rapariga que aparecer com o vestido mais gracioso e ao mesmo tempo mais econômico, assim se favorecendo o bom gosto e se corrigindo a prodigalidade. Não é em todos os países da Europa, somente naqueles de proverbial asseio e boa ordem, que poderemos deparar com espetáculo igual.

Nas diferentes seções da fábrica rapazitos andam constantemente varrendo o chão, de sorte que se percorre todo o edifício sem se enxergar um papel amarrotado ou um fiapo sobre o solo. Da banda de fora foram colocadas aqui e além barricas para nelas se sacudir o que se não pode aproveitar, de modo que se percorre toda a propriedade sem se encontrar por toda a parte senão absoluta limpeza. Os homens andam igualmente asseados: em mangas de camisa, mas de camisa limpa, se em trabalho grosseiro; de uniforme de algodão azul, calças e dolman, se noutros trabalhos. Aos domingos, usam calças brancas e sapatos brancos. Nenhum se apresenta no baile sem gravata. Os princípios de boa educação abrem brecha nos usos mais enraizados; nenhum dos empregados come com os dedos e raros são os que levam a faca à boca. Quase todos comem com o garfo, como a gente fina. É gente essa que também toma chá e talvez o prefira ao café; nos armazéns vi pilhas de latas de chá Lipton. Parece Londres em pleno sertão.

Dentre em pouco não haverá na Pedra um só analfabeto. Oito escolas, maiores ou menores, funcionam de dia ou nas primeiras horas da noite, frequentadas pelos que não estão de serviço. Nem só meninos e meninas se sentam nos seus bancos: também adultos que se não envergonham de ir aprender as primeiras letras. As horas de aula acabam invariavelmente pelo entoar do Hino Nacional, que qualquer das crianças do lugar sabe de cor e canta sem titubear.

Um cinematógrafo, de fitas cômicas ou científicas ou de qualquer outro gênero, escolhidas pelo coronel Delmiro Gouveia, funciona aos domingos para recreio dos operários, mas a criançada só tem nele ingresso apresentando cartões de aproveitamento dados pelos mestres. A frequência escolar é obrigatória: o coronel Delmiro Gouveia realizou o ideal democrático do ensino primário gratuito, leigo e compulsório. O ensino religioso é dado à parte, em prédicas, pelo vigário, a quem o proprietário recomenda que incuta máximas de limpeza de preferência a noções teológicas.

A banda de música é boa, toda de elementos locais. Ouvia-a no “Guarany”, em valsas e dobrados pernambucanos e na famosa “Vassourinha”, que o senhor Gonçalves Maia intitulou de Marselhesa pernambucana, música alegre e animada ao som da qual se aplicavam surras durante a época da salvação.

A proibição de beber, de jogar e de carregar armas explica em boa parte a ordem admirável que reina em toda a fábrica da Pedra. Aos domingos exclusivamente é facultado beber cerveja aos copos e cachaça aos cálices, entre 7 e 9 horas, no “rink” de dança. Ninguém, todavia, pode ir ao ponto de embriaguez, nem se lhe consente levar bebida para casa. Em outra qualquer ocasião a venda de espirituosos só é permitida mediante licença do médico, referenciada pelo diretor.

A bebida cessa assim de ser um vício, mas o que é sobretudo espantoso é que o coronel Delmiro Gouveia haja podido alcançar que o seu pessoal ande todo ele, mas todo sem exceção, sem a tradicional faca de ponta que adorna o cinto de todo roceiro, jornaleiro ou carreiro dos engenhos, o qual pode andar sem camisa mas não deixa de possuir a sua “pernambucana”. Sobre a mesa do coronel Delmiro, no escritório da fábrica, que uma dezena de máquinas de escrever enche do seu tic-tic, vi uma dessas facas que havia dias fora apreendida a um operário. Escusado é dizer que o operário teve que pagar multa, e em caso de reincidência será expulso.

Os únicos homens armados dentro dos limites da propriedade são os vigias da ronda, que se revezam e andam de carabina às costas, servindo de policiais e fazendo respeitar o poder da autoridade. A autoridade é o coronel Delmiro Gouveia. Não há outra dentro do perímetro da fábrica da Pedra, nem mesmo o clássico subdelegado. Como o coronel Delmiro tem o bom senso de não fazer política nas Alagoas, vivendo bem com todos os governadores, todos o respeitam e ninguém se abalança a disputar-lhe o mando no que é dele, como noutras condições aconteceria fatalmente, arvorando-se o subdelegado em emissário do poder.

O seu sistema de muitas é o melhor instrumento de preservação da sua disciplina. Eles não revertem em favor da fábrica, mas da comunidade, pesando porém individualmente, e caem mais do que chuva, porque caem todo o ano. Nos dias que lá passei vi multado um pintor que saiu pela janela da sala em que estava trabalhando em vez de sair pela porta; multado um operário que pôs carreteis de linha 30 numa caixa de linha 40; multadas duas operárias por estarem conversando no trabalho; multado um operário por se conservar em casa de chapéu na cabeça, sinal de má educação envolvendo um desrespeito à dignidade do lar. Assim se vai fazendo praticamente e sem violências a educação social desta população. Dentro em breve ela estará apta a ter uma consciência política.

É claro que as multas por essas pequenas faltas são diminutas em valor e como os salários são bons, facilmente as suportam aqueles sobre que incidem. Mas não é somente por isso que se não queixam de rigor: é porque as sentem invariavelmente aplicadas com justiça e para seu benefício, e no seu ânimo tais impressões se vão gravando concomitantemente. Um dos meus companheiros de digressão, o Dr. Assis Chateaubriand, professor da Faculdade de Direito e um dos mais belos talentos do Brasil novo, denominou “Resposta a Canudos” o excelente estudo em que “Diário de Pernambuco” resumiu suas impressões. O coronel Delmiro Gouvêia tem procedido com um tino, um senso psicológico, um espírito de tolerância e de penetração de que infelizmente não deram prova nossos governantes ao lidarem com o caso de Canudos, que liquidaram pela brutalidade e pela crueldade, quando esse incidente de patologia social apenas requeria moderação e brandura. Por sua vez a população sertaneja tem respondido aos processos do coronel Delmiro com clara percepção e decidida simpatia. O sertanejo sente e compreende que o querem utilizar, como elemento de trabalho, sem o rebaixarem nem o explorarem.

Não há entre nós tabela mais franca de salários do que na Pedra. Uma operária trabalhando algumas horas na fábrica e outras em casa, a fazer meadas, chega a ganhar até 26$000 por semana. E ao mesmo tempo lhe é oferecida uma vida material em condições que pareceriam um impossível naquelas brenhas. Não existe por enquanto uma igreja, que vai porém ser edificada, mas já existem banheiros para homens e para mulheres. O coronel Delmiro acredita na religião como freio moral e como poder educador, e não vê vantagem em alterar nossa tradição religiosa, que é a católica. As missões protestantes não merecem sua simpatia, não por uma questão de seita, mas por poderem servir de elemento perturbador. A “fé dos nossos pais” basta para as necessidades espirituais de gente que é preciso instruir nos rudimentos da civilização e para quem a higiene deve ser um dos primeiros dogmas.
O coronel Delmiro é um praticante e um apóstolo da religião da limpeza. Por isso a Pedra reluz toda ela como a Holanda que Ramalho Ortigão devaneou com mais imaginação do que exatidão.

Na Pedra a carroça de lixo é uma instituição. Neste e noutros detalhes a sua administração é um modelo de governo municipal, fazendo lembrar a das cidades alemãs. É também uma aplicação felicíssima dos princípios do socialismo de estado, exercido pela forma paternal na jurisdição de um só, que encarna o “bom tirano”. Que o tirano é bom, di-lo a atmosfera de afetuoso respeito que o circunda e que mostra bem que a população atrasada e descurada dos sertões tem inteligência para compreender os benefícios que lhe pode trazer o espírito de progresso exercendo-se no seu proveito material e moral. As peculiaridades psicológicas dessa população não são tanto uma questão de hereditariedade, sendo aliás sabido que ela é no Brasil a que tem conservado o tipo europeu, mais à distância dos cruzamentos a que o fator português se entregou. Aquelas peculiaridades são antes o produto do meio – do clima ingrato pelas secas frequentes, da insuficiência de alimentação que daí resulta, do definhamento consequente da espécie, da falta de previsão diante da ação da Natureza, do isolamento mental que produz o afastamento dos centros de povoação entre si, por sua vez todos arredados do litoral onde a cultura cosmopolita se faz sentir com mais intensidade. São motivos esses que o Sr. Gustavo Barroso, que percebe como mui poucos a alma dos nossos sertanejos e descreve como raríssimos os aspectos braviamente pitorescos dos nossos sertões, enumera com autoridade amenizada pela graça do estilo, no seu último volume – “Heróis e Bandidos”, ou os “Cangaceiros do Nordeste”.

Nos domingos realiza-se na Pedra, no vasto terreno em frente a fábrica, uma feira à qual concorrem para mais de 6000 pessoas. O coronel Delmiro Gouveia, como sempre, se antecipou nos seus processos, pondo em prática as feiras livres com que o prefeito do Recife está procurando remediar a carestia da vida, combatendo a especulação. A empresa da Pedra paga do seu bolso os impostos à Municipalidade de Água Branca para que todos os produtores possam desembaraçadamente comparecer e concorrer.

A feira só começa quando a féria do último trabalhador for paga, para não haver vantagem para alguns compradores em detrimento de outros. A casa do proprietário ali se abastece em condições iguais às dos seus dependentes. A empresa não se desinteressa entretanto do que vai por esse mundozinho comercial: no seu costumado paternalismo ela põe de prontidão alguns carroções de farinha, feijão, milho, carne de vento e bacalhau, para entrar em concorrência, caso o mercado der indício de querer, injustificadamente elevar os preços, a fim de os sustentar num limite razoável. A carne de sol é vendida a 1$400 o quilo; a carne fresca a $900 a e a 1$000; a farinha regula de 1$000 a 1$100 a cuia.

A fiscalização exercida pela direção da fábrica nada parece haver esquecido, antes a tudo se estende e como que a tudo atende. A escola principal fecha às 9 horas da noite; ao toque da corneta os bancos a um e um se vão levantando, desfilando e dispersando; dez minutos depois não se consente uma criança fora do seu lar. Os vigias tangem para casa qualquer que der mostras de querer demorar o regresso. Os frades mendicantes não são admitidos na vila operária senão aos domingos, a horas determinadas, quando é livre aos pobres da vizinhança ali virem esmolar. A tolerância não deve degenerar em indisciplina. Essa tolerância existe, porém, de fato e revela-se de formas variadas e indiscutíveis.

Assim a fábrica da Pedra toma ares de verdadeira Arcádia no nosso mundo tão convulso, cooperado sem desconfiança e entendendo-se às mil maravilhas pessoas de nacionalidades hoje inimigas. O sócio do coronel Delmiro é um italiano de Trieste; italiano é o engenheiro principal da usina elétrica, que tem sob suas ordens um chefe de máquinas alemão e um empreiteiro português; o gerente técnico da fábrica é inglês, o eletricista suíço-alemão, o mestre de tinturaria inglês que praticou na Alemanha. O espetáculo é uma miniatura do Brasil como deve ser e tem de ser, um Brasil sem ódios de raça, nem de nacionalidade, nem de política, um Brasil cadinho de todos os povos e campo de trabalho para todas as capacidades. As recriminações, as animosidades, os rancores não são ali de praxe, nem sequer conhecidos. Com o seu espírito superior – porque esta é uma superioridade a valer – o coronel Delmiro tornou impossíveis semelhantes rixas. A Pedra é um estabelecimento nacional e não um prolongamento da Europa.

A personalidade desse homem é das mais interessantes. Sinto faltar-me, mais do que os elementos todos de que haveria mister, o feitio literário preciso para fazer-lhe a psicologia em flagrante. É um “sel-made man”, educado no trabalho desde a adolescência, com uma inteligência das mais argutas e uma assimilação das mais fáceis; ao mesmo tempo com um temperamento de gozador, sem que todavia este traço se afirmasse até lhe entibiar a energia ou lhe afrouxar a operosidade, antes contribuindo para pôr uma discreta nota artística na sua atividade. Não trata de ganhar somente para gastar, embora gaste sem parcimônia. Nasceu para lutar e também para lucrar, mas não cogita de arrecadar, antes de aplicar o dinheiro em novas empresas, fecundando novos melhoramentos. A estrada de rodagem de Garanhuns à Pedra uma vez aberta ao tráfego, logo pensou em outras, e vai já ligar um ponto dela com Rio Branco por Buíque, cortando na largura o território de Pernambuco. Para baixo abre-se a estrada de Maceió por Quebrangulo numa extensão de 140 quilômetros, prolongando-se para o norte até Mata Grande. São mais de 400 quilômetros de estradas de rodagem de que dispõe até agora o pequeno estado de Alagoas.

As estradas abertas pelo coronel Delmiro não são macadamizadas como estradas europeias, nem constam de séries de obras de arte; são porém constantemente consertadas e conservadas em boa condição. No caminho encontramos três turmas de trabalhadores fazendo os necessários reparos, e cada viagem sua é uma inspeção. A paisagem é monótona na sua grandeza: vales extensos entre os serrotes sombrios. Os aspectos de vida animal dão-lhe porém certo movimento. A cada passo se encontra gado de pelo limpo e bem fornido de carnes que salta lépido para os capoeirões quando o automóvel quase os toca; frequentemente rebanhos de cabras e cabritos correm ligeiros, alarmados pela buzina; de quando em vez uma raposa de rabo frocado atravessa de um para outro lado da estrada; bandos de rolas, de periquitos, de jandaias, de papagaios, galos de campina de cabecinha vermelha, um ou outro gavião, dois outros urubus juntos, adejam sobre a vegetação.

Na Pedra, a margem dos dois açudes é coalhada de jaçanãs e outros pássaros de brejo e aves de arribação, e pela estrada que vai à cachoeira correm sem grande pressa as seriemas esguias e elegantes. Por entre as rochas do que se diz ter sido o antigo leito do São Francisco, hoje cruzado pelo viaduto que vai até a beira do precipício, os moços mostram os seus pequenos focinhos. O coronel Delmiro Gouveia não consente que se dê um tiro nos seus domínios; os animais têm adquirido confiança e já mostram, como a gente, um arzinho de segurança. Ali é sempre o tempo, invocado pelo poeta

“Em que as rolas e os verdes periquitos
Do fundo do sertão descem cantando”.

Um dos nossos companheiros de viagem que carregara uma espingarda e munições de caça, prelibando o gosto de excursões cinegéticas, passou pela decepção de não poder tirar a arma da coberta de couro. O coronel Delmiro Gouveia pratica por intuição muitos atos a que os governos se dispõem com sábias e ponderadas resoluções. Ele é legislador por instinto, como é engenheiro e jurista, e o melhor até que as suas deliberações costumam ser as acertadas. Engenheiros e juristas de verdade têm tido que adotar suas conclusões.

Determinando nas margens do São Francisco o que o governo britânico determinou na África do Sul para evitar a extinção de várias espécies animais, o coronel Delmiro Gouveia vai de fato criar uma enorme reserva onde pululará dentro em pouco a fauna que nenhuma postura de caça protegia há até aqui e que era indiferentemente dizimada em todas as quadras do ano.

A citação da África do Sul traz à lembrança o nome de Cecil Rhodes; o coronel Delmiro é da mesma família moral; é da raça dos conquistadores. Se se movesse na alta esfera política de uma grande potência colonial, seria um criador de nações. Há no seu espírito a vista de conjunto, a vista a longa distância e a vista dos detalhes. É um administrador nato, que nunca se afasta mentalmente da sua obra, que a ela se dedica de corpo e alma, até quando graceja. Pela audácia das concepções recorda os plutocratas americanos, um plutocrata em quem a bondade brasileira, às vezes relembrada com mais retórica do que verdade, se traduz numa sadia preocupação de bem estar geral, tantas vezes alheia às cogitações dos argentários pela esperteza, que nunca o abandona nem mesmo quando ele se abandona, traz à memória o Isidore Lechat da peça de Mirbeau – “Les affaires sont les affaires”, sem o traço porém de vaidade pueril que empresta ao personagem francês uns laivos ridículos que a sua astúcia quase não basta para eliminar.

O coronel Delmiro Gouveia é ele próprio uma criação original, que na esfera comercial e industrial dá lições aos mais sabidos e que nos sertões brasileiros realizou uma obra extraordinária ao seu alcance civilizador. Aos que só imaginam essa região povoada de jagunços e cangaceiros criminosos, ele mostra que aqueles elementos de desordem podem ser aproveitados e transformados em elementos de cultura. A questão é tratar o sertanejo como uma criatura humana, um pouco como criança, mercê da sua ignorância, um pouco como adulto, mercê da sua natural agudeza. Antes do escritor formular seu juízo, o coronel Delmiro corroborava na prática o que acaba de dizer o Sr. Gustavo Barroso: “Veremos que as forças maravilhosas dessa sociedade, cruel e criminosamente abandonada, estão em energias de potencial e só se manifestam no crime porque não têm onde nem como se manifestar de outra maneira. As suas volições, os seus anseios e desejos se perdem sopitados ou extravasam para o cangaceirismo”.

O coronel Delmiro Gouveia jeitosamente, dentro da sua firmeza, rouba a esta gente toda a oportunidade do crime e toda a sugestão. Privá-los de caçar é ainda tirar-lhes um ensejo de nomadismo, porque, diz ele, quem diz caçador diz vagabundo. Também na Pedra não há prisão, quando a cadeia de Santana de Ipanema, a 20 léguas de distância e a de Água Branca, a três léguas, estão cheias de criminosos, muitos culpados de homicídio em rixa. Fez-me lembrar Block Island, onde eu costumava veranear nos Estados Unidos, a algumas milhas da costa e onde no dia em que um cocheiro irlandês se embriagou e fez distúrbio, não se sabia como o engaiolar, porque não havia xadrez. Foi preciso fechá-lo no depósito de peixe.

O mais interessante é que esse espetáculo se nos oferece a 40 léguas de Canudos e a 70 de Juazeiro do padre Cícero. O espetáculo é impressivo e sugestivo. O sertanejo sente que a sua dignidade não é ultrajada porque a disciplina o compele a obedecer a ordens, a atender a injunções, mesmo a sofrer repreensões. A manutenção da ordem é da sua conveniência, acabou ele por se capacitar dessa verdade, e como é mais atilado do que se pode à primeira vista calcular, deixa-se levar com facilidade.

Não deixa no entanto de ser surpreendente que o prestígio se possa exercer sobre essa gente sem se combinar com o sobrenatural. Antônio Conselheiro era um profeta em comércio com a divindade; o padre Cicero é um ente sagrado pelo seu caráter religioso e pelas circunstâncias em que o fanatismo pôs em destaque esse caráter; o coronel Delmiro é porem simplesmente um homem sem nada que o eleve aos olhos dos seus dependentes a não ser a sua diligência, a sua lhaneza que às vezes soe converter-se em severidade, e o seu sentimento de justiça, que é uma coisa que tanto mais se aprecia quando se a vê menos usualmente empregada. De resto esse homem, sem pretender a entreter relações com o mundo dos espíritos, é também na sua humanidade capaz de cometimentos que forçam a admiração. No dia em que a poderosa bomba de pressão impeliu a água nos canos que deviam levá-la à Pedra, os sertanejos, muitos dos quais duvidariam até então desse milagre da força, ficaram pasmos, e alguns, correndo estrada afora, vieram dizer: “Ela vem mesmo aí, seu coronel.” “Ela” era a água benfazeja, de que o sertão tamanha falta sente. O efeito de sugestões como essa tem forçosamente que ser mais duradouro do que o que se baseia em causas sobrenaturais que, quando explicadas, passa a ser escarnecidas.

A impressão com que se deixa os domínios do senhor da Pedra, como já é tratado o coronel Delmiro Gouveia, domínios dentro dos quais, na frase do meu companheiro de viagem, Dr. Assis Chateaubriand, Hércules petrificado carrega nos seus braços Anteu, é uma impressão de confiança no futuro do Brasil. Se, sem recorrer a capitais nem a trabalhadores estrangeiros, foi possível no esforço de um nacional erguer nos sertões do Brasil, no que há demais agreste, uma construção industrial e social desta robustez, é que o Brasil é capaz de energias, tem dentro de si possibilidades de que poucos suspeitavam, pois os primeiros, a não acreditarem nelas eram os que nelas mais falavam, sem tratarem de as experimentar.

Imagens: Cachoeira de Paulo Afonso, Delmiro Gouveia e a fábrica da Pedra

Fonte principal: JORNAL “ESTADO DE S. PAULO” – NOVEMBRO DE 1917 UM PASSEIO A PAULO AFONSO

Fonte pesquisada: facebook

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