sexta-feira, 15 de maio de 2015

PINICANDO PALMA

Por Rangel Alves da Costa*

O velho sertanejo entoa: Quem pinica palma e não arranca dedo é cabra sem medo, pinicador de calma. E pinicando vai porque o gado berra e logo cai por terra sem ter o seu bocado. Mete a mão em espinho, mas vai pinicando até nada restar, e o bicho vai mastigando, a fome vai enganando até a chuva chegar...

Já o aboiador solta a voz no meio do tempo para cantar a comida do bicho na época da estiagem: Triste a sina sertaneja, em tudo na vida a peleja quando desanda a seca e não há nada que proteja. O gado berra faminto e dói por dentro não minto, verdade digo o que sinto. E quando não há que fazer pra bicharada comer só mesmo catando palma, pinicando com espinho, pra fome ter sua calma, pra durar mais um tiquinho, gado ê ô, gado ê ô...

O bicho avista a palma e sente no olhar o espinho, mas é a vida ou morte, é o mastigar ou cair de fraqueza e virar comida de urubu. Até que a carne dá gosto quando nova e amolecida, mas depois de tanto sol, quando resseca até por dentro, precisa de muito mastigar para ser engolida. E sem água por perto mais difícil ainda. Por dentro aquela pasta espinhenta e na boca a secura debaixo de tanto sol.

Tem gente que canta enquanto pinica palma, tem gente que entoa aboio no ofício da pinicagem, mas é no silêncio reflexivo que a maioria do sertanejo vai lançando a faca amolada na planta de espinho e vida. E diz a si mesmo que não vai mais uma semana e o roçado já estará totalmente desnudo de qualquer planta. Só restará o mandacaru de braços abertos implorando ajuda divina para salvar o sertão das dores da estiagem.


Já outro, em tom intimista recheado de melancolia e sofrimento, a cada corte que dá na palma vai pensando no que será amanhã. O barreiro secando, sem carro tanque que passe com gota d’água, sem uma cuia de farelo, sem nenhum alimento para o gadinho que fica mais ossudo a cada dia. Sim, ainda resta aquela palma, mas mesmo a planta sertaneja já está carcomida, magra, quase sem carne, dura e ressecada. E num restinho que não dura muito a acabar.

Sei da história de um que começava a chorar quando colocava o cesto de boca aberta para receber os pedaços de palma. Uma lágrima caía a cada corte, a cada pedaço caído no fundo do cesto. Não é costumeiro que o sertanejo chore mesmo diante do sofrimento e da desesperança maior, pois sofre calado toda dor e agonia. Mas quando perguntado por que sempre enchia os olhos de lágrimas ao pegar na palma e cortar, ele logo respondeu: “Choro não, seu moço, choro não...”. E prosseguiu:

“Choro não porque aqui não tem água nem pra chorar. Fico triste sim, é verdade. E cada vez mais entristecido porque sei que o bicho só come uma palma assim, seca e espinhenta, quando já não suporta mais ficar sem mastigar qualquer coisa. Todo mundo pensa que bicho gosta de comer palma, e gosta mesmo, mas quando a planta está verdosa, carnuda e com espinho que mais parece um fiapinho de planta. Mas quanto mais a planta envelhece e seca mais o espinho fica duro e pontudo, tirando sangue de qualquer um. E é palma assim desse jeito, dura e com espinho de ponta, que todo dia pinico um bocado para dar ao gado. E sei que somente a fome faz o bicho mastigar espinho pra não despencar de vez. E é por isso que fico triste e meus olhos se molham de qualquer coisa. Mas não choro não...”.

Choro velado o do homem sertanejo. Talvez o gado, o cavalo, o jumento, o cachorro e todo bicho de cria e de mato, chorem a mesma lágrima. Mas é uma lágrima que seca pelo sol antes mesmo que brote no olhar. E secando por dentro, a lágrima se transforma em dor. O homem mostra seu sofrimento na feição desesperançado, triste demais. O bicho rumina, relincha, cacareja, ladra, pia, mostra na pele de couro e osso a dor de todo sertão.

Mas tem gente que nem palma tem para socorrer a cria. Tem gente que nem tem mandacaru, facheiro, urtiga ou cansanção. Tem gente que não tem nada além de uma porta aberta para o chão nu e ausente de qualquer coisa e espécie. Somente o sol que se derrama de dia e a lua que se deita na noite. E a esperança sem fim que volte a vida numa nuvem de chuva.

Poeta e cronista
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