Por Rangel Alves
da Costa*
Nada mais como
antes. Hoje praticamente tudo se encontra pronto, embalado, armado, no ponto de
uso. O mercadinho, a mercearia, a bodega e a farmácia substituíram a produção
caseira e agrícola de subsistência. Muito difícil encontrar alguém que ainda
mantenha horta, um cantinho com ervas medicinais para uso familiar, um pomar de
árvores frutíferas. Até o carro de bois e o animal caíram em desuso como meio
de transporte.
Também
raridade que alguém costure as próprias roupas, se arrisque num tingimento,
faça o seu xarope, levante o alicerce e parede da moradia, vá construir seu
tijolo e telha na olaria, se esforce na mataria em busca de madeira para a
porta e telhado. Não que seja cansativo cortar, serrar, nivelar, bater, pregar.
Mas muito mais fácil pagar para ter tudo em mãos, ainda que com custo elevado
demais.
Houve um tempo
que somente produzindo para a subsistência era garantida a manutenção biológica
da vida. A partir de instrumentos rudes, o homem primitivo foi construindo as
utilidades de cada dia. Ainda hoje muita gente sobrevive do que planta e colhe
e do que transforma da natureza. É certa a existência de muitas famílias que
vivendo nos escondidos e distâncias do mundo jamais precisaram de qualquer
objeto ou produto vindo de uma prateleira ou loja de centros urbanos. Tudo é
feito, consumido e utilizado ali mesmo.
É a
necessidade, a pobreza, a falta de jeito a dar, que impulsiona o ter de fazer.
Igualmente a morada nas regiões de difícil acesso a tudo. Ou faz ou não tem,
pois difícil comprar. Quem não pode ir até a farmácia tem de se contentar com o
mastruço, a erva cidreira, o boldo, o sambacaitá, a hortelã. Do mesmo com
relação aos objetos que guarnecem uma casa. Como móvel pronto é caro, o jeito
mesmo é procurar tronco de pau, fazer tamborete, estender ripa e ter como mesa.
A pobreza e a
necessidade acabam em invencionices, em busca de alternativas e na visão de
utilidade sobre quase tudo. As soluções encontradas pelas pessoas necessitadas
são verdadeiramente maravilhosas. Do insignificante surge algo essencial. Nada,
seja da natureza ou por achado, foge ao seu poder de transformação e utilidade.
O que hoje a burguesia enfeita suas mansões como rusticidade primeiro esteve
presente nas moradias de porta e janela e parede de barro.
Num tempo mais
antigo, o mobiliário de uma casa sertaneja fazia com que a família se sentisse
acanhada com a chegada de qualquer visitante. A primeira coisa que dizia era
que não se incomodasse com a velharia e penduricalhos ali presentes. Mas hoje é
a burguesia que vai buscar nesse passado. O velho oratório veio de lá, o antigo
ferro de passar também, e igualmente com as antigas cristaleiras trabalhadas
por mãos rudes e calejadas de luta.
Os velhos
santos e anjos talhados em madeira se tornaram preciosidades valiosas. Um
oratório bem conservado, trabalhado em madeira de lei e envernizado pelo tempo,
hoje tem um preço inestimável nos grandes centros. E as madames enviam
emissários sertões adentro para pagar doistões pelas velharias ainda presentes
nas casas humildes. E aproveitam para pagar uma ninharia por bordados
maravilhosos, rendas ornadas nas almofadas de bilros e costuras fiadas com
maestria artesanal.
Como afirmado,
tamanha criatividade do povo emerge da necessidade de sobrevivência, pois o
dinheiro faz o papel inverso. A riqueza comumente é preguiçosa, omissa, ociosa,
demasiadamente indolente. O rico, por querer tudo facilmente em suas mãos,
sequer quer saber de onde vem e como foi feito o que consome. Deita confortavelmente
na rede de dormir e nem imagina como ela foi produzida ou se o seu valor foi
justo em comparação ao seu conforto.
Do conceito de
riqueza e de pobreza subtrai-se o que se denomina valorização daquilo que
possui. Quanto mais difícil a sua obtenção mais o seu resultado é valorizado.
Daí que a família empobrecida luta para conseguir os meios necessários à
sobrevivência e orgulha-se por tudo que é conseguido. Regozija-se com o pouco
de feijão de corda, com a melancia de ponta de ponta de rama, com a abóbora
leiteira, com o ovo recolhido no quintal. E quando nada disso é conseguido,
lança-se ao sacrifício de inventar a arte de viver.
De outros
idos, tenho notícias e ainda recordo de como o meu conterrâneo de Nossa Senhora
da Conceição de Poço Redondo se esforçava produzindo a sobrevivência ou para
suprir aquilo custoso ao povo pobre. Dona Alice produzia sabão num tacho
enorme, levado ao fogão de lenha com banha, cinzas e outros produtos da terra.
Dona Benvinda descia os barrancos ao fundo da casa e lá, no fundo barrento do
tanque, fazia surgir potes, panelas, cuias, vasilhames de barro.
Dificilmente
não havia um xarope de fundo de quintal em cada casa sertaneja. Colchão de
capim recolhido nos pastos, camas e mesas da madeira ao redor, cabaças serradas
ao meio para servir de prato, areia de riacho para arear panela. A necessidade
fazia que fosse assim. Mas hoje nada mais como antes. Nem o canto melodioso das
lavadeiras ecoa mais pelas pedras molhadas da vida.
Poeta e
cronista
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