Por Rangel Alves
da Costa*
Chegará um dia
que encontrarei o meu mundo. Ou o meu verdadeiro mundo. Abdicarei do terno e da
gravata, da roupa social, do sapato e meia, deixarei de lado a carteira com
documentos, esquecerei quantas contas num mês tenho a pagar. Não me preocuparei
mais com a violência no trânsito, os perigos da esquina, os olhares ameaçadores
que miram sem parar, e retornarei ao meu primitivismo bucólico.
Deixarei de
ser alguém preocupado com os deveres e as obrigações para ser apenas humano. E
um ser humano despojado de computador, notebook, smartphone e outras
tecnologias. Aprendi a escrever em folha de papel e ter um caderno e um lápis
com ponta já será o bastante. Ora, o suficiente para rabiscar textos
descompromissados, poesias avessas, palavras esvoaçantes. Depois colocarei tudo
num alforje e estará bem guardado.
Ah que belo
mundo chamado sertão. E o sertão será o meu mundo de retorno de um dia. Mas não
o sertão da cidade, dos modismos, das músicas insuportáveis, das motocicletas
subindo pelas calçadas. Não. O meu sertão será o do meio do mato, entrecortando
veredas, na vivência ao redor da catingueira, do umbuzeiro, do mandacaru, do
xiquexique, da loca de pedra. Um sertão de lua e de sol, de estiagens medonhas
e terra molhada de quando em vez.
O meu sertão
de um dia ainda terá jeito matuto, caboclo, humilde, de casa de taipa e
tamborete de tronco de pau. Ainda terá a palavra pura do sertanejo autêntico, o
jeito simples de ser e viver, a incontida e tão necessária religiosidade. Ainda
calçará roló ou chinelo de couro cru, usará chapéu de couro e terá como
companhia o aió, o alforje, o embornal, a cumbuca de guardar água.
Mas ainda será
possível encontrar um sertão assim, alguém certamente indagará. Respondo que
sim e alargo a resposta. Há um sertão que a maioria dos sertanejos,
principalmente os mais jovens, não quer ou se nega a avistar. Do quintal
adiante sempre haverá outro sertão. Mesmo que a cidade tenha se transformado
num lugar comum, ainda é possível encontrar toda a pujança sertaneja pelos
arredores e mais distante.
Os caminhos
sertanejos, ao longo das estradas e adentrando na mataria, levam a lugares
ainda não abraçados de morte pelo progresso devastador. É um mundo empobrecido,
carente de assistência, mas também um leito de riqueza inigualável. Homem e
natureza vivem em irmandade, o bicho se amoita ao redor do tamborete, o feijão
de corda é debulhado entre proseado de amigos, um fole é puxado debaixo dum pé
de pau, um aboio é ouvido ao avermelhado entardecer.
A velha
parteira é sempre chamada depois da meia-noite, a mão rude amacia o barro e
depois faz surgir pote e panela, o queijo de coalho se estende na madeira do
quintal, folhas e raízes são escolhidas para tratar todo tipo de enfermidade.
Ninguém dá um tostão pela casinha quase caindo. Quem avista ao longe sempre
imagina uma morada solitária ou abandonada pelos retirantes da seca. Mas logo
um cachorro aparece, uma galinha ciscadeira passa em correria, um menininho
aparece trazendo à mão um brinquedo de pau ou uma ponta de vaca, que é a
riqueza maior de sua fazenda de canto de quintal.
Oi de casa, oi
de fora, e alguém logo surgirá para cumprimentar quem por ali faz passagem.
Sempre aquele sorriso sincero do sertanejo, a mão estendida, o olhar
surpreendido pela inesperada visita. Mesmo não tendo uma só cadeira, faz questão
de convidar a entrar e logo aponta um tamborete. Diz logo que não olhe a
pobreza, pois a vida difícil nunca dá para ter qualquer conforto. Mas que se
sinta em casa e disponha do que a pobreza possa oferecer. Uma caneca d’água,
uma xícara de café, talvez uma espiga de milho ou bocado de doce de leite.
Mas não raro
sentar à mesa de ripa para saborear uma buchada de bode, um capão de quintal,
uma galinha de capoeira, um cozido à sertaneja. Vinho de jurubeba e cachaça com
casca de pau, um pedaço de queijo com goiabada, um proseado de não mais querer
sair de lá. E pelos arredores, nas paredes de barro, as imagens de santos,
anjos, de Nosso Senhor Jesus Cristo. Um velho oratório guarda um céu de
esperanças de dias melhores, e de vez em quando velas chamejam nas escuridões
nordestinas. E que imensa luminosidade.
É juntinho a
um mundo assim que eu quero viver, e que será minha moradia de um dia. Numa
casinha distante, longe de estrada e de barulho de motor, sem pensar em
despertador ou de relógio na parede. Um radinho de pilha me bastará para ter
notícias do louco mundo, mas certamente não estarei preocupado com mais um
escândalo político ou governamental ou se o povo foi às ruas para cobrar aquilo
que já sabia que o governante não cumpriria.
Um fogão a
lenha, panela de barro, moringa e pote. Uma estante de estaca amarrada em cipó,
uma rede de dormir e uma Bíblia Sagrada. Meu Deus, santos e anjos, estarão no
templo do meu coração. Uma chaleira de fazer café e janela sempre aberta para o
açoite do vento entrar. E de vez em quanto escrever no papel que a verdadeira
felicidade está onde o coração sorri para a vida.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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