Por Rangel Alves
da Costa*
Elas são as
primeiras a chegar e as últimas a sair da igreja. Mas nunca sentam nos bancos
da frente, próximo ao altar e ao vigário, preferindo do meio pra trás ou em
local que permita uma ampla visão do ambiente. E assim porque precisam avistar
quem entra, com que roupa está, se é pessoa conhecida ou não. Ademais, será
sempre útil que a pessoa possa ser comentada sobre alguma coisa. Do contrário
não há como fofocar sobre a vida alheia.
Quem as avista
e não as conhece logo supõe serem apenas duas senhoras já envelhecidas e com
todas as características de fervorosas beatas: xales à cabeça, roupas compridas
à moda antiga, livros sagrados à mão, rosários como companhia, feições
compassivas e olhos tingidos de fé. Atravessam ruas com passos lentos e assim
vão entrando na igreja. Fazem os cumprimentos sagrados diante do altar,
sentam-se como duas cansadas e se lançam aos terços e rezas.
Os dedos se
preparam para passar as contas dos rosários e as bocas para dizer baixinho as
rezas sagradas, próprias para o momento. Mas quando já estão prontas para o
primeiro Credo, eis que a chegada de alguém ou um fato ou outro logo chama a
atenção. Então lançam os olhares bisbilhoteiros pelos arredores e enchem as
bocas maldosas com palavras que nada têm a ver com qualquer reza. Mas ainda
assim conseguem misturar tudo e passam a fofocar baixinho enquanto fingem
orações
“Creio em Deus
Pai todo-poderoso, criador...”. E pausa a oração para dizer: “Você viu a roupa
da sirigaita. Toda vestida no luxo como se fosse madama de verdade. Uma quenga,
isso sim. Uma quenga se querendo passar por mulher séria. É até pecado uma
coisa dessa aqui na igreja”. E prossegue: “criador do céu e da terra...”. Mas
não vai além porque a outra também já interrompeu seu terço para fazer
observações sobre a vida alheia.
“Você tem
razão, mas não é só ela não. A bem dizer, se fosse contar aqui quem já tá à
beira da fogueira do pecado só restaria nós duas. A igreja vive cheia de
pecadora disfarçada em cristã. Sem ter isso como maldade, mas penso eu que só
vem aqui para ver se diminuem o pecado da carne e a corrupção da alma. Veja
aquela ali, retocando a maquiagem diante de Deus. Vai-te pecadora, vai-te
queimar no fogo da geena...”.
E prossegue,
sem mais recordar onde havia parado: “Desceu à mansão dos mortos; ressuscitou
ao terceiro dia; subiu aos céus...”. Mas tem de parar para ouvir as
considerações da amiga: “Olhe aquela ali comadre, aquela de roupa enfeitada de
azul e grená. Dinheiro pra comprar um vestido desse ela não tem, isso eu tenho
certeza. É viúva e vive da pensão recebida do falecido. Coitado, morreu novo, e
dizem que foi uma morte triste. Ia passar por uma porta e as pontas, os chifres
que ela botava nele, acabaram enganchando na portada e ninguém chegou pra
ajudar. Morreu ali mesmo o coitado, chifrudo como sempre viveu...”.
“Brincadeira,
né comadre, mas que ela botava chifre nele todo mundo sabe. E agora certamente
anda com um e com outro, levantando a saia pra quem oferecer tostão. Esse
vestido comprou assim, com dinheiro de macho. Uma pessoa assim jamais terá
salvação. Ou ela pensa que missa limpa a alma de rapariga? Aliás, comadre, e
sem querer falar mal de ninguém, aqui vive cheio de rapariga. Olhe aquela
ali...”. “Qual comadre, a de brinco graúdo ou a de cocó?”. São forçadas a
prender uma gargalhada, se benzem e prosseguem nas rezas, e agora outra totalmente
diferente.
“Bendita sois
vós entre as mulheres, e bendito é o fruto do vosso ventre...”. E num instante
uma dá um beliscão na outra diante do surgimento de um fato inusitado. E fala:
“Olhe, olhe comadre. A comadre tá vendo o que eu tô vendo ou será que me
engano? A sirigaita não tem um pingo de vergonha na cara, levantou e seguiu
diretamente pra sacristia. Agora se confirma o que todo mundo diz: ela tem um
chamego com o vigário”. Fingindo espanto, a outra ajunta: “É o fim do mundo!”.
E ainda se ouve na prece esparsa: “Em nossos olhos que se derramam num vale de
lágrimas...”.
Assim as duas
beatas. E todo santo dia assim. Mas basta que uma desaparte da outra que uma
joga a outra nos portais dos pecadores: “Aquela alma impura, fofoqueira, não
tem salvação. Cuidai de mim ó Senhor, que sou tão devota e cheia de virtudes
cristãs”.
Poeta e
cronista
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