quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

SÓ TRÊS COISINHAS ...

Por Joab Aragão

À memória de Juraci Guimarães Andrade, o indefectível Magro de Aço. 
Joab Aragão

Recebida a missão, coloco os papéis na bolsa e, com o roteiro previamente traçado, ponho o carro em funcionamento, e me dirijo para os areais do Piauí, fronteira com o Ceará.

Depois de percorrer sessenta quilômetros de asfalto, tomo uma estrada vicinal e sigo direção ao norte, em busca da fazenda, citada no corpo da cédula hipotecária. O banco, para efeito de uma ação de execução, necessitava de um levantamento dos bens hipotecados, e avaliar a situação de insolvência do cliente. Rodo vários quilômetros sobre um areal imenso e desabitado. O sol das dez horas já esquentava a manhã de verão além da conta esperada. Finalmente, descortinada uma extensão de várzea, salpicada por carnaubeiras, onde pastavam poucas ovelhas e alguns jumentos, vislumbro uma habitação comum na região. Tratava-se da fazenda procurada. Uma sertaneja, com aparência sofrida de uns quarenta anos nas costas, chega até a porta e responde a minha saudação com um bom dia tão fraco que quase não saía da boca. Confirma que ali, eram, realmente, as terras que eu procurava, e que o marido, antigo vaqueiro, que fora o responsável pela condução daquela propriedade, saíra ao amanhecer para trabalhar numa fazenda vizinha, uma vez  que, onde outrora havia criação de vacas de boa origem, de ovelhas de boa raça e de uma regular produção de cereais estava, como podia ser vista, naquele estado de decadência, sem a mínima condição de sobrevivência.

Resolvi esperar pelo retorno do antigo vaqueiro.

Sentado num tamborete rústico, debaixo do alpendre, aguardei o regresso do meu informante, e agora trabalhador diarista em outras terras. Concentrado, analisava o quadro desolador da fazenda. Lancei a vista sobre o velho  curral. Divisei um amontoado de madeiras e telhas que denunciava ter sido, naquele local, um antigo aprisco. Mais à frente, depósitos em ruínas, cercas caídas. Sinais de abandono. Não deu para avaliar o tempo empregado na contemplação do quadro. Dentro da casa, a mulher do bom dia fraco, comandava a lida doméstica. A molecada miúda fazia barulho pela cozinha.

Meio dia.

De repente, o rinchado de um jumento despertou-me da concentração. Ao contrário da cantoria de Luiz Gonzaga, o jerico não estava a marcar as horas, não. Anunciava, sim, com o relincho, a aproximação de um cavaleiro. Num meio galope, cavaleiro e montaria chegaram ao terreiro. Tratava-se do dono da casa, o meu candidato a informante. Magro, moreno, chapéu de couro de abas bem pequenas sobre a cabeça, montado em pelo numa égua magra que teimava em balançar o rabo sujo de fezes pastosas, para afastar as moscas impertinentes. Apeou-se, cumprimentou-me e perguntou-me a razão da minha permanência ali. Respondi- lhe que era por conta de uma vistoria em todo o território da fazenda, para fins de avaliação, pois os bens do seu patrão provavelmente iriam para leilão. Prestativo, não se fez de rogado. Pediu tempo apenas para engolir uns caroços de feijão. Convidou-me  para  acompanhá-lo  no  repasto.  A  fome  atestou-me  que  aqueles

caroços de feijão eram mais do que bem vindos naquela ocasião. Bocado comido, partimos, ele e eu, no cumprimento da missão. Muita terra percorrida e pouca benfeitoria encontrada. No meio desse acervo, um grupo gerador de energia elétrica em péssimo estado de conservação. Dada a tarefa por encerrada, retornamos à moradia onde, debaixo do alpendre, eu complementava meu relatório. No término, para aguçar minha curiosidade, perguntei-lhe qual a razão da decadência econômico-financeira do patrão, pois, pelo que pude apurar, o homem fora possuidor de muitos bens e detentor de créditos, e a situação do momento era de insolvência... O que acontecera, afinal?
De pé, tirou a cumbuca do chapéu de couro da cabeça. Com a mão esquerda passou os dedos pelos cabelos, deu uma cuspida para um lado, me olhou e disse, com ar circunspecto:

-  Meu patrão, foram só três coisinhas véias e besta!
-  Três coisinhas... E que coisinhas foram essas? Indaguei.
-  Jogo, muié e bibida. Coisinhas véias e besta ...

In DEBAIXO DO ALPENDRE, Aragão, Joab – Edição do autor - 2015

Sobral, 28.02.2011

Enviado pelo professor, escritor, professor e pesquisador do cangaço José Romero Araújo Cardoso

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