Por Rangel Alves
da Costa*
“A fumaça
subindo, pelo ar a fetidez de couro queimado. O braseiro nas costas, corroendo
as entranhas, dilacerando a vida. Os gritos se perdem ao desvão. Roucos,
toscos, são os rogos daqueles que têm o seu couro esturricado pelo ferro em
brasa, pela lâmina incandescente. E tudo isso porque pensou que era homem e que
era livre, ao menos para viver em fuga”.
De couro é a
vida e a morte. A pele do bicho, a pele do homem. Couro curtido, couro
enrijecido, couro amolecido, couro ferido. E também a pele lanhada pelo couro
impiedoso da chibata e do açoite.
O couro é o
lombo, é o tecido que recobre o homem, o manto de aquecimento e proteção dos
animais. Mas o couro no couro, a chibata na pele, contradiz a vida, contradiz
todo ser, pela selvageria da cria na criatura.
No animal e no
homem, o couro ferido faz sangrar, faz gemer. E depois morrer, lentamente, com
a pele se abrindo em chagas, tomada de pruridos e bichos, ao desvão do nada no
nada que já é.
“No meio da
senzala, ao redor do tronco, a podridão do mundo se mistura ao mau cheiro
alastrado de tudo. O chão encharcado de sangue velho, duro, lamacento, tornado
barro debaixo do sol. E tudo partindo do tronco imenso, de madeira de lei
enegrecida pelo tempo e pelo escorrimento das dores e sofrimentos. Para a
impiedosa madeira o negro era levado arrastado, acorrentado ou na força da
chibata ou da pontada ferindo a pele. E depois devidamente amarrado com as
costas nuas para que a pele se abrisse e o sangue jorrasse. E o couro cru
descia feroz, voraz, sedento de sangue. Cada pancada um grito silencioso, cada
silêncio uma mortificação. E de repente as costas escravas, já marcadas pelos
castigos constantes, se tornavam carne viva, pulsante, sangrando. E o chão ia
bebendo daquela dor incontida e o ar se enchendo ainda mais daquele torturante
cheiro de morte”.
O artesão faz
do couro aquilo que bem entender. É seu ofício transformar a pele do animal em
utilidades para o homem, para a vida e os próprios animais. Daí surgirem as
selas, os arreios, as botas, as alpercatas, os aiós, os embornais, os chapéus
de couro. Eis uma arte digna ao homem. Mas outro homem existia que era lobo do
próprio homem, algoz de seu semelhante. Este fazia do couro negro, da pele
escrava, a mais indigna das ações: chicotear até lanhar a pele, abrir o couro e
fazer jorrar o sangue. Por quê?
“Negro não
foge do meu engenho. Nenhum negro safado arreda pé de minha senzala. Vá atrás
do bicho, procure nas distâncias, cate em cada canto, em cada tufo de mato e em
cada gruta de pedra, mas quero o fujão aqui antes do sol se esconder. Mas
depois de capturado e severamente punido, ainda tem de ser amarrado no tronco e
açoitado até se esvair em sangue. Assim há de ser para servir de exemplo aos
outros negros. E do mais velho ao mais novo, que todos estejam na plateia
assistindo o açoitamento. E quero que açoite com tamanha força que o sangue jorrado
respingue nos pés da negrada. E depois do couro lanhado, se ainda vida restar
no infame, que um balde de salmoura seja derramado na sua cabeça. Então a dor
sequer terá voz para gritar. Faça o que eu disse. Vá logo atrás desse negro
fujão”.
O açoite da
chibata não dói nem na taca de couro cru nem no algoz que desce sua covardia no
lombo nu do escravo. E muito menos pesa na consciência do senhor de engenho que
ordena o açoitamento. Mas não somente o escravo sentia a dor da crueldade
tomando todo o seu ser, torturando suas entranhas. Até hoje se ouve os gritos e
os últimos gemidos de morte. E assim tantos e mais tantos, negros ou de
qualquer cor, continuam sentindo na pele o dilacerante coice da chibata.
“Uma
chicotada, uma chibatada, um açoite, uma surra. Um chicote de couro, uma
chibata trabalhada em nós, uma tira de couro envolta em ferros pontudos, uma
corrente enferrujada pelo banho de sangue de tantos usos. Um homem, um ser
humano, tratado como bicho apenas por ser negro, pela sua cor e descendência.
Um escravo, um subjugado, um submetido ao tormento e a indignidade. Um corpo
negro, uma pele suada da luta e lanhada pelos castigos, uma costa nua para que
o dito civilizado deite sobre ela sua ira sem fim. E apenas porque, não
suportando mais tanto sofrimento, o negro imaginou ser mais digno viver como
bicho entre os animais da floresta. Era um tipo de liberdade sonhada”.
O que diz a
história sobre tudo isso? Quase tudo, mas nada que servisse como lição para
além e depois. O negro foi libertado da senzala, mas não dos olhos e
sentimentos de muitos. Aqueles gritos de dor ainda ecoam no tempo presente,
porém poucos escutam seus rogos. E como se o passado não pertencesse somente ao
passado, trazem à vil consciência que o tronco da senzala ainda não foi arrancado
e pode ter serventia E por isso erguem os braços para baixar o açoite em
qualquer oprimido.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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