domingo, 23 de novembro de 2014

NO SERTÃO EU VI

Por Rangel Alves da Costa*

Seu moço, sertões adentro, seu moço eu vi! Meninos eu vi café sem pão, vi pão sem ter gole d’água pra mastigação, mastigado e engolido a seco como a secura do chão. Coisa de cortar coração.

Vi chaleira sem água e vi fogo sem chaleira, não vi chaleira nem fogo, não vi nada no fogão. De tanto ver coisa assim, no peito a judiação.

Vi um fogo entristecido, esperando um toucinho ou de carne qualquer tiquinho. Mas sem nada abrasar nem cheiro a se espalhar, apenas o fogo no chão sem panela nem tição. E o vento levando a cinza para o ar acinzentado, assim o sertão é pintado pelo sol demasiado.

Vi um pote com lama, vi moringa já rachada, caneca sem ter mais nada, tudo seco e encardido como retrato sofrido e pelo tempo afligido. Lá fora o sol esquentando, a poeira levantando, o bicho magro e ossudo, eis o retrato de tudo.

Vi oratório sem vela e vi aberta a cancela, janela sem aquarela, cena mais triste aquela. Tapera sem porta na frente, casa sem porta no fundo, assim aquela gente no mundo. Menino barrigudinho, mas do barro na parede, come sem matar a sede e depois adormece na rede.

Vi um pai com espingarda seguindo pela estrada, dizendo que ia caçar um preá para o jantar. O dia inteiro esperando e nada de bicho passando, voltou todo entristecido, tudo parecendo perdido, mas nada de diferente naquele povo sofrido. Assim a vida e a sina do sertanejo oprimido.

Vi o cachorro secar, vi papagaio emudecer, vi gato cacarejar, vi calango enraivecer, toda a bicharada dali com o mesmo padecer, o mesmo sofrimento da gente também no ser inocente. E a ossuda vaquinha, desde muito tão magrinha, caiu ao entardecer. Não tendo mais qualquer, prostrou-se para morrer.


Vi o menino com fome, vi o menino chorando, vi o menino esperneando. E vi a mãe lamentando, vi a mãe suplicando. E vi o pai em aflição, catando pedaço de pão, buscando raiz pelo chão num desespero cristão. Então achou uma lagartixa, segurou de jeito a bicha e jogou pelo braseiro. E logo aquele cheiro, carne branca sem tempero, e o menino sem berreiro.

Vi uma manhã sem manhã, apenas com oração, faltando café com pão. Sem café na dispensa sem pão dormido escondido, sem farinha nem fubá, sem nada de alimentar. Manhã que acorda mais triste na pobreza que persiste, na desvalia do mundo, num povo e seu submundo.

Mas também vi o inverso, desse espelho o reverso. Mesmo com a vida em lamento, com tudo no sofrimento, vi uma feição de alento. Ninguém se dobra à dor, eis que um povo sem temor. Ninguém se dá por vencido, pois a fé o torna erguido. Ninguém desanima de morte, pois na vida está a sorte.

Por isso vi moça bonita, toda vestida de chita, sonhando de sua janela, sendo a mais linda donzela. Vi moço subindo em alazão, cortando todo o sertão por estar apaixonado. E fiquei admirado com a flor que levava à mão, de craibeira do sertão com perfume do coração.

Vi a roupa no varal bailando num pedestal, vi a mulher numa cantiga, tão bela e tão antiga, enquanto batia o pilão. Uma cena de adoração: enquanto a mulher batia e a madeira rangia a sua voz mais subia. E tão alegre cantava que ninguém imaginava que no pilão nada pisava.

Vi o menino brincando, vi o calango correndo, dois amigos convivendo. O passarinho chegava, ao redor esvoaçava até o menino falar. Falava com o passarinho e fazia do ombro um ninho. E assim o dia inteiro e tudo tão verdadeiro que chegava a intrigar. Um menino de sertão, criança de pé no chão, com os bichos a prosear.

E depois do sol vi a lua. E que lua imensa a do sertão. Descia aquele clarão com a noite em veneração. A mão dedilhando a viola, pois a vida assim consola. E depois a porta fechada, o silêncio por jornada. Brisa matuta da serra, cortina que se descerra.

Poeta e cronista

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