Por Rangel Alves
da Costa*
Seu moço,
sertões adentro, seu moço eu vi! Meninos eu vi café sem pão, vi pão sem ter
gole d’água pra mastigação, mastigado e engolido a seco como a secura do chão.
Coisa de cortar coração.
Vi chaleira
sem água e vi fogo sem chaleira, não vi chaleira nem fogo, não vi nada no
fogão. De tanto ver coisa assim, no peito a judiação.
Vi um fogo
entristecido, esperando um toucinho ou de carne qualquer tiquinho. Mas sem nada
abrasar nem cheiro a se espalhar, apenas o fogo no chão sem panela nem tição. E
o vento levando a cinza para o ar acinzentado, assim o sertão é pintado pelo
sol demasiado.
Vi um pote com
lama, vi moringa já rachada, caneca sem ter mais nada, tudo seco e encardido
como retrato sofrido e pelo tempo afligido. Lá fora o sol esquentando, a poeira
levantando, o bicho magro e ossudo, eis o retrato de tudo.
Vi oratório
sem vela e vi aberta a cancela, janela sem aquarela, cena mais triste aquela.
Tapera sem porta na frente, casa sem porta no fundo, assim aquela gente no
mundo. Menino barrigudinho, mas do barro na parede, come sem matar a sede e
depois adormece na rede.
Vi um pai com
espingarda seguindo pela estrada, dizendo que ia caçar um preá para o jantar. O
dia inteiro esperando e nada de bicho passando, voltou todo entristecido, tudo
parecendo perdido, mas nada de diferente naquele povo sofrido. Assim a vida e a
sina do sertanejo oprimido.
Vi o cachorro
secar, vi papagaio emudecer, vi gato cacarejar, vi calango enraivecer, toda a
bicharada dali com o mesmo padecer, o mesmo sofrimento da gente também no ser
inocente. E a ossuda vaquinha, desde muito tão magrinha, caiu ao entardecer.
Não tendo mais qualquer, prostrou-se para morrer.
Vi o menino
com fome, vi o menino chorando, vi o menino esperneando. E vi a mãe lamentando,
vi a mãe suplicando. E vi o pai em aflição, catando pedaço de pão, buscando
raiz pelo chão num desespero cristão. Então achou uma lagartixa, segurou de
jeito a bicha e jogou pelo braseiro. E logo aquele cheiro, carne branca sem
tempero, e o menino sem berreiro.
Vi uma manhã
sem manhã, apenas com oração, faltando café com pão. Sem café na dispensa sem
pão dormido escondido, sem farinha nem fubá, sem nada de alimentar. Manhã que
acorda mais triste na pobreza que persiste, na desvalia do mundo, num povo e
seu submundo.
Mas também vi
o inverso, desse espelho o reverso. Mesmo com a vida em lamento, com tudo no
sofrimento, vi uma feição de alento. Ninguém se dobra à dor, eis que um povo
sem temor. Ninguém se dá por vencido, pois a fé o torna erguido. Ninguém
desanima de morte, pois na vida está a sorte.
Por isso vi
moça bonita, toda vestida de chita, sonhando de sua janela, sendo a mais linda
donzela. Vi moço subindo em alazão, cortando todo o sertão por estar
apaixonado. E fiquei admirado com a flor que levava à mão, de craibeira do
sertão com perfume do coração.
Vi a roupa no
varal bailando num pedestal, vi a mulher numa cantiga, tão bela e tão antiga,
enquanto batia o pilão. Uma cena de adoração: enquanto a mulher batia e a
madeira rangia a sua voz mais subia. E tão alegre cantava que ninguém imaginava
que no pilão nada pisava.
Vi o menino
brincando, vi o calango correndo, dois amigos convivendo. O passarinho chegava,
ao redor esvoaçava até o menino falar. Falava com o passarinho e fazia do ombro
um ninho. E assim o dia inteiro e tudo tão verdadeiro que chegava a intrigar.
Um menino de sertão, criança de pé no chão, com os bichos a prosear.
E depois do
sol vi a lua. E que lua imensa a do sertão. Descia aquele clarão com a noite em
veneração. A mão dedilhando a viola, pois a vida assim consola. E depois a
porta fechada, o silêncio por jornada. Brisa matuta da serra, cortina que se
descerra.
Poeta e
cronista
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