Por Rangel Alves
da Costa*
Sempre achei
uma comparação bastante interessante, mas somente depois de muitas reflexões me
dei conta que o Bolero, de Ravel, realmente serve, e exemplarmente, como
alegoria da vida. E em tudo, na cadência, no ritmo, no passo seguinte sem
modificar muito o anterior. Depois de atentamente ouvir a genial música
clássica torna-se impossível não fazer a devida analogia com o bolero da
existência, do compasso do dia a dia.
O compositor
francês Maurice Ravel (1875-1937), ao buscar elementos da tradição espanhola
para sua criação, tencionou fazê-la como um balé em movimento contínuo, cuja
dinâmica e movimento não vêm da variação rítmica, mas sim do efeito da
orquestração. Daí que Bolero possui um único movimento, invariável, sempre
crescendo, se repetindo e se recriando, de forma contagiante e obsessiva.
Como afirmado,
o bolero se movimenta contínua e progressivamente, no mesmo passo rítmico, num
tempo único de início ao fim, perpassando a sensação de que faz e se refaz.
Contudo, o mais curioso na composição não é a sua repetência instigante, mas a
sensação que transmite que estamos diante de uma longa caminhada que apressa o
passo, descansa um pouco e depois novamente prossegue em marcha irrequieta.
Ora, neste sentido, o bolero é a própria vida.
Sim, a vida é
como um bolero de Ravel, uma composição em tempo único, para ser vivida num
constante crescendo, se repetindo e se refazendo, cujas maiores transformações
estão apenas na intensidade da orquestração que cada ser vivente se permite. Do
nascimento ao instante da partida, e a estrada, o percurso, a própria vida,
tudo vai sendo propulsionado como um contínuo bolero, incansável, extasiante,
que deseja bailar ainda mais.
No clássico de
Ravel pressente-se ainda a influência da música flamenca, sempre contagiante,
com sapateados, palmas e movimentos ritmados, expressando uma quase que
desesperada busca de afirmação e reconhecimento. Como no Bolero, cujo ritmo de
marcha parece clamar para ser ouvido, e por isso mesmo crescendo de
intensidade, o flamenco possui nos sapateados essa voz de luta, de força, de
encorajamento e bravura. E mais uma vez a vida.
Há uma cena no
filme “Retratos da Vida” ( de 1982, com direção de Claude Lelouch) onde, aos
pés da Torre Eiffel, o bailarino argentino Jorge Donn inicia a dança como se
quisesse voar. Em seguida, compassadamente, com gestos contínuos e quase
uniformes, faz o corpo voltar-se em várias direções. E mais adiante, de modo
mais extasiante e frenético, volta ao gestual de voo, só que muito mais
apressadamente. Eis a síntese do bolero, que é também da vida: a necessidade
impulsiva de seguir adiante, primeiro num voo e depois apenas rumando em
qualquer direção.
Bem sei que há
aqueles que desejam seguir pela estrada em passo de valsa, e talvez até uma
vienense de grande e iluminado salão. Ora, a valsa é gênero de compasso nobre,
onde a leveza é sinônima de poder e ostentação. Muitos, evitando a persistente
continuidade do bolero, preferem apenas dar passos suaves, rodeios, volteios
pelos salões iluminados da vida. Assim podem valsar em meio à nobreza, ao luxo,
à suntuosidade, vez que lhes é permitido, mas sem poder fugir do bolero real
que inevitavelmente os espera.
Tantos outros
se rebolam nas rodas de samba, dos cocos, dos xaxados, mas apenas por alguns
instantes, vez que logo retornando ao bailado da luta. O gingado do corpo pode
buscar o ritmo que desejar, o balanço que quiser, e da forma que bem entender,
mas ninguém pode fugir do bolero, do bolero da vida. Eis que esse ritmo não é
só de cadência musical, mas o compasso do homem na sua luta, na sua caminhada,
no seu desejo de seguir sempre em frente.
E basta ver
que igualmente à existência o bolero é de sequência única, com rompantes e
branduras, como se a música não se cansasse de existir. Na sua dança da
existência, o ser humano também vive em cima de um palco e vai incansavelmente
bailando. Há momentos parecendo querer voar, noutros impulsivamente seguindo, e
ao final, já extasiado, querendo apenas repouso. Do mesmo modo no bolero de
Ravel, onde o desfecho musical, após a sequência intensa e extasiante, soa como
um último e lento suspiro.
Então que se
invente e reinvente danças, bailados e compassos, que se requebre ou dance como
desejar, mas é no bolero que a vida se embala a cada instante. No bolero humano
a marcha para o trabalho, para os afazeres cotidianos, para garantir o pão da
sobrevivência. No bolero da vida a luta pela existência, a caminhada estafante
para ultrapassar as curvas do caminho, a intensa e imensa vontade de não ser
vencido antes da vitória. E por isso vai, segue, faz e refaz num verdadeiro
bolero.
E de repente o
maestro ergue a batuta para a última marcação. Depois da incansável marcha o
bolero tem de acabar. Repentinamente toda a intensidade da música se
transforma. Ecoa mais lenta, cansada e suspira para o seu final. É o fim do
bolero. E da vida.
Poeta e
cronista
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