Por: Rangel Alves
da Costa(*)
A PEDRA DE CALCUTÁ
Mário Quintana
me chega com seu verso simbólico e sentimental. Sempre gostei de sua poética
diferenciada, seus versos brancos, seu desapego ao verso arquitetônico e
floreado. Leio-o como uma prosa que acaba sendo poesia. E precisamente pelo
humanismo contido em cada palavra.
Pela manhã,
até casualmente, acabei lendo uma de suas preciosidades: Hoje me acordei
pensando em uma pedra numa rua de Calcutá. Numa determinada pedra numa rua de
Calcutá. Solta. Sozinha. Quem repara nela? Só eu, que nunca fui lá. Só eu,
deste lado do mundo, te mando agora esse pensamento... Minha pedra de Calcutá!
Pois é
Quintana, hei de confessar que também vivo pensando em muitas pedras de
Calcutá, de Jerusalém, de uma cidade siberiana de nome tão difícil de
pronunciar, de Santa Cruz de la Sierra, de Poço Redondo. Minha querida Poço
Redondo e suas pedras no meu olhar. Que se deseje ou não que seja assim, mas
elas estão lá a este momento, soltas, esquecidas no meio das ruas.
Quintana, meu
bom amigo, saiba que somente a solidão e a distância nos trazem a pedra de
Calcutá. E todas as pedras. É a solidão que nos faz fechar os olhos e viajar,
partir e encontrar o desconhecido. É a distância que nos faz querer alcançar.
Ora, se nada do que está em volta existe, é sempre vazio e imperceptível, então
procuramos desbravar as profundezas da alma e através da mente chegar até onde
jamais estivemos.
O acordar
barulhento, rodeado de pessoas, com o necessário silêncio quebrado por sons
indesejáveis, não nos permite avistar nenhuma pedra em nenhum lugar. Ao invés
de encontrar a pedra distante estaremos nos deparando com as mesmices
cotidianas. E por isso mesmo como é bom avistar a pedra de Calcutá. Um bom
sinal de quietude espiritual.
Mas a pedra de
Calcutá é também a moça bonita que um dia desejamos encontrar. Logicamente que
vivemos encontrando jovens formosas, preciosidades femininas, perfeitos
exemplares da feminilidade, mas nada como a moça bonita despertada no
pensamento. Parece um sonho acordado, mas de repente nos vem à mente aquela
feição angelical, aquele sorriso meigo, um encanto de mulher.
O psicanalista
certamente diria que a moça bonita chega ao pensamento através do despertar do
inconsciente, revivendo situações passadas. Mas não, pois apenas a pedra de
Calcutá. Nunca a encontramos, conversamos ou nos olhamos nos olhos, mas ela
existe. E tão humanamente possível que o pensamento se encanta diante de sua
beleza. Chega a vê-la, senti-la, tocá-la.
E a pedra de
Calcutá é avistada também nas vielas imundas e miseráveis, nos sertões
empobrecidos e relegados pelos poderes, nas marquises com seus habitantes
noturnos, nos descampados africanos tomados por restos ossudos de gente, nos
fugitivos das guerras, nos modernos campos de concentração. Ora, as dores, os
gritos, os horrores de lá são também sentidos por todos aqueles que estão
distantes e que sentem suas presenças como pedras de Calcutá.
Eis que a
pedra me chega ao amanhecer, ao cair da tarde, noite adentro, varando a
madrugada. Tanta coisa longe, distante, desconhecida, para ser avistada. Vejo a
flor mais bela do alto da mais alta montanha; olho o velho monge tateando as
paredes escurecidas do eterno mosteiro tibetano; avisto o sacerdote, num tempo
distante, subindo as escadas do templo do sol no império maia.
Menina triste
à janela, deitando flor murcha à mão, peço desculpa por chegar assim sem
avisar. Quem me mandou foi a pedra, quem me trouxe foi a pedra, aquela mesma de
Calcutá. E com ela também estarei em ruas distantes, em estradas desconhecidas,
em caminhos jamais seguidos, pois preciso sair de mim para viver outras vidas.
Meus pés não pisarão na terra, mas lá estarei no pensamento, na mesma visão que
me faz alcançar a pedra de Calcutá.
Por isso mesmo
que não saio nunca de minha cidade, de minha amada Poço Redondo. As ruas de lá
são quase todas de pedras soltas. Mas só preciso de uma. Aquela onde ninguém
imagina que esteja. Mas está no meu pensamento, por cima da terra onde tanto
ainda caminharei, num sertão distante que também é Calcutá. E também sou pedra
de lá.
(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos seguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Burlamaqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e cronista
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