quinta-feira, 9 de maio de 2013

A FOLHA E O VENTO (Crônica)


Por: Rangel Alves da Costa(*)

A FOLHA E O VENTO

Já final de outono, paisagem desoladora, folhas ressequidas, tons lancinantes, entristecimentos. Quase todas as folhas já haviam desfalecido e levadas pela ventania, ou simplesmente caído no chão de leito ocre, marrom, acinzentado. Sem cor.

As árvores nuas choravam suas ausências. Mas a mesma dor da perda de toda estação. As folhas que ainda restavam dependuradas davam seus últimos suspiros. Frágeis demais, sem mais seiva alguma nas veias, sentiam-se estalando até no sopro da brisa.

Uma árvore onde só restava uma folha, já conhecendo que naquele mesmo dia ficaria totalmente despida, tomou coragem e falou: Minha querida folha, eis que nosso tempo é curto aqui na terra. Nas mãos do homem não durarei muito tempo. E você, tão jovem, e tendo de partir ao entardecer de hoje.

A folha estava fraca demais para expressar qualquer sentimento ou demonstrar reação. E por isso mesmo foi buscar, lá no fundo da alma, um restinho de força para perguntar por que partiria ao entardecer daquele dia. Foi quando a árvore respondeu que o vento passaria ali para levá-la bem alto, juntinho às portas do jardim do céu. Só isso.

A árvore viu a folhinha chorar pela última vez. Neste momento nem pensou duas vezes em proporcionar-lhe um pouco de força nos seus últimos instantes. E avisou-lhe que antes de partir teria seiva suficiente para conversar tudo que quisesse com o vento. Se o seu argumento fosse bom, talvez ele nem a levasse consigo naquele dia.

E, por dentro do tronco, adentrando as galhagens e chegando até o seu corpo esquálido e quebradiço, fez chegar o tanto suficiente de seiva que durasse até os últimos raios avermelhados do entardecer. Sabia que este era o momento de o vento, tal qual trem na estação, apitar e partir. Era assim, todo outono e o trem da estação chegava para as tristes partidas.

Sem saber o que a árvore havia providenciado, ao receber a seiva a folha ficou espantada com a súbita energia que se viu tomada. Sentiu até encorajamento para gritar; cantaria uma ária se houvesse ali outra folha para ouvi-la. O corpo enrijeceu-se, ganhou outra cor no semblante, os olhos brilharam e começou a enxergar melhor. E assim pôde ver quando o vento se aproximava.

Percebeu que era o vento do entardecer que vinha chegando por causa das árvores agitadas e de folhas e restos de folhas esvoaçando pelo ar. Sentiu arrepios, uma frieza por todo o corpo. Fechou os olhos e orou. Despediu-se dessa vida sem querer partir. Ao abrir os olhos viu a face do vento à sua frente.

O vento era bonito, porém parecia cansado e tristonho. Daí que seu rosto quase não se movia, não se agitava como todo vento faz. Com os olhos fixos naquela que levaria naquele momento, espalhou uma leve e perfumada aragem pela boca ao dizer: Está pronta para partir? A folha não conseguiu responder. Não queria partir de jeito nenhum. E se perguntou por dentro: Por que toda folha tem de morrer no outono?

Sentindo que ela não respondia, e entendendo muito bem os motivos daquele silêncio, o vento continuou a falar: Consigo enxergar sua dor e seus sentimentos. Mil lenços não enxugariam as lágrimas que chora por dentro. Também choro por dentro quando faço assim, quando levo pelo ar essas sombras do outono. E choraria muito mais se não soubesse que para vocês, talvez para todos os seres, a partida não significa morrer completamente.

A folha, gélida, continuava em silêncio. Mas o vento continuou: Com a partida, a chegada de outras vidas; com a morte, a ressurreição. Há um renascimento em tudo. Não demorará muito e novas folhas nascerão aqui mesmo nesta árvore. E no outono seguinte também terão de partir. Mas vou lhe contar um segredo que nunca revelei a ninguém.

Fale, fale. A folha conseguiu dizer. E ouviu: As folhas que levo simplesmente ficam espalhadas pelo ar. Depois não sei o destino que tomam. Mas com você farei diferente. Conheço um caminho onde as folhas entram novamente na fila para retornar já na próxima estação. E assim você poderá partir agora e depois voltar para o mesmo lugar. Aceita?

A folhinha jogou-se aos braços do vento, feliz e contente porque retornaria ao mesmo lugar. E o vento soprou forte, rumando sem destino. Estava desnorteado, angustiado demais, gritando e chorando por dentro. Havia mentido para a folhinha. Não haveria retorno, senão noutra folha, noutra vida.

Eis que as folhas simplesmente morrem no outono. As folhas também morrem. Também.
  
(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos seguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Burlamaqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.


Poeta e cronista
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