Por: Rangel Alves da Costa(*)
Outro dia,
numa de minhas andanças pelo sertão, parei numa casinha para dar boa tarde à
família. Gosto de fazer isso com os meus conterrâneos que vivem nos descampados
distantes.
Sol de lascar,
de queimar o juízo, o tempo parecia tomado de labaredas. Calor terrível,
sufocante, desesperador. E não poderia ser diferente.
Época de seca
maior, do flagelo em cada canto, da estiagem devastadora. Carcaças
de animais mortos pelas estradas e arredores, plantas acinzentadas e
retorcidas, potes vazios, moringas reviradas. A fome se alastrando por todo
lugar.
A água que eu
levava já havia acabado há muito. E era impensável pedir um copo d’água diante
de uma situação daquelas. Na verdade nem sei como aquelas famílias sertanejas
faziam para matar a sede.
Cheguei.
Chamei. Como sempre fui bem recebido. Duas coisas são logo observáveis em
situações assim: o prazer que o humilde sertanejo possui em receber visitante e
a primeira frase dizendo que ali é morada de pobre e que não repare na pobreza.
Não reparei em
nada, pois gosto de estar ao lado desse povo, dessas pessoas honestas,
sinceras, sempre acolhedoras, ainda que se mostrem constrangidas pela difícil
situação de sobrevivência.
Mas reparei
noutra coisa. Num canto da tapera, com um livro aberto por cima das pernas,
estava um menino, filho mais velho da família. Somente de bermuda esfarrapada,
descalço, não tirava os olhos do seu livro.
Aproximei-me e
perguntei, em tom de brincadeira, o que de tão interessante havia ali que ele
não dava nem atenção à nossa conversa. Então ele levantou - menino miúdo,
raquítico, magro - e com os olhos brilhando disse que estava aprendendo a ler.
Eu disse que
muito bem, que seguisse adiante e logo estaria conhecendo tudo que lhe chegasse
às mãos. Perguntei o que estava lendo e ele respondeu que sobre uma coisa bem
bonita, bem importante pra todo mundo. E uma coisa que fazia muita falta ali.
Inesperadamente
estendeu-me o livro e pediu que eu lesse pra todo mundo ouvir. E imediatamente
lancei os olhos sobre a página. Fiquei espantado. Água era a coisa maravilhosa
que ele falava. Então li o texto que dizia mais ou menos assim:
“A mesma
importância que possui o sangue para o funcionamento do organismo e a
sobrevivência do ser humano, bem assim é a água na vida do sertão e do
sertanejo.
Verdade é que
ninguém vive sem água, nada é produzido na terra sem que ela seja molhada para
brotar. E quando ela começa a faltar tudo se transforma em aflição. Daí ser
difícil imaginar toda uma região e seu povo sem água no dia a dia.
Assim acontece
no sertão, causando terrível sofrimento para todos os seres que nele habitam. A
falta de água não causa sofrimento apenas ao homem, ao sertanejo, mas também
aos animais e plantas.
A cada
estiagem que chega logo os problemas começam a surgir. Sem as chuvas, não
demora muito e os tanques e barragens secam, a terra fica sem força para
receber semente, o homem se desespera.
E o sertanejo
se desespera porque sabe que sem água quase não há vida no seu lugar. Precisa
matar a sede da família e dos animais, precisa da água para o banho e para o
alimento, precisa da terra molhada para trabalhar e sobreviver.
Sem água, tudo
se transforma em dor e sofrimento. Com potes e moringas vazias, com o fundo dos
tanques endurecido e tornando lama, com o gado berrante sedento, só lhe resta
pedir a Deus para que não demore a mandar trovoada.
Mas como as
chuvas demoram a chegar e a cada dia que passa o sofrimento aumenta, chega o
instante que a única saída para continuar sobrevivendo é esperar que o
carro-pipa forneça algum balde de água barrenta, quase imprópria para o consumo
humano.
Quem pode
constrói cisternas, mantém reservatórios para guardar por mais tempo as águas
de outras chuvas. Mas sendo a maioria empobrecida, dificilmente o sertanejo
está suficientemente preparado para enfrentar uma seca mais longa.
Assim, como
acontece nos desertos, qualquer gota de água se torna um bem precioso para o
sertanejo. Sabe que um copo de água é infinita riqueza para matar a sede do
filho pequenino que chora aflito. Sabe o quando é doloroso virar a moringa e
não ver descer uma gota sequer.
Daí que a
água, para o sertão e o sertanejo, é bem de importância comparável à própria
vida. Dela dependem para tudo, para a sobrevivência e para matar a sede. E
basta constatar sua importância no olhar do próprio sertanejo depois de dois ou
três anos sem qualquer chuvarada.
Apenas as
águas dos olhos. Lágrimas de sofrimento”.
Depois da
leitura olhei ao redor e as lágrimas do texto, as lágrimas de sofrimento,
estavam ali diante do meu olhar. E que sofrimento.
(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e cronista
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