Por: Rangel Alves da Costa(*)
SOZINHA
Levantou
cedinho, varreu a casa e o telheiro, passou gadanho na malhada para recolher ao
menos metade das folhas mortas do outono. Depois tirou leite das vacas,
separando um tanto para fazer um doce, catou no quintal uma galinha gorda para
fazer um cozido ao molho pardo e em seguida foi escolhendo na dispensa outros
ingredientes.
Colocou o doce
no fogo de lenha, sangrou a galinha para o prato especial, juntou todos os
temperos e pertences numa panela grande e cuidou de fazer brasa no fogão de
barro da cozinha. O passo seguinte foi juntar os ingredientes para o macarrão,
o arroz e o feijão, bem como salada de alface com rodelas de ovos.
Descavou dos
cantos uma velha garrafa de aguardente e um vinho de jurubeba, coisas que sabia
bem guardadas para ocasiões especiais como aquela. Abriu a antiga cristaleira,
deixou uns seis copos reluzindo e colocou sobre uma banqueta talhada
artesanalmente, dessas que nem os bons carpinteiros fazem mais.
Em seguida
forrou a velha mesa de madeira envernizada com uma toalha bordada à mão,
ajeitou um jarro com flores vistosas de plástico e enfim sorriu pelo trabalho
feito. Realmente, tudo estava na mais perfeita ordem, cuidado e bem cuidado,
com o esmero de quem vai receber convidados muitos queridos e importantes.
Mas para quem
a mulher tanto cozinhava, fritava, mexia, ajeitava, varria, forrava, lavava,
cuidava? Quais as pessoas especiais que chegariam ali para a visita tão
esperada e que seria tão festejada? Quem mereceria daquela mulher tanto
esforço, verdadeiro sacrifício, para oferecer o que de melhor ali pudesse
existir?
Ninguém. Isso
mesmo. Ninguém. Absolutamente ninguém. Aquela mulher, uma solteira e solitária
senhora na beirada dos cinquenta anos, mas já parecendo de setenta pelo amargor
dos dias e das relembranças de tudo não acontecido, trazia para si aquele
trabalho todo sem estar esperando visita alguma.
Não esperava,
pois nunca chegava ninguém ali naqueles ermos solitários rincões adentro,
nenhuma visita batia à sua porta para uma palavra ou proseado qualquer, mas
tinha a máxima e absoluta certeza que um dia sua casa seria invadida por
pessoas, por palavras, por olhares, por amizades, por ávidos por um prato e um
copo acolhedor.
Filha única,
desde muito já sem a presença dos pais, morando nas distâncias dos cafundós,
sem ter amizades ou relacionamentos com pessoas dos arredores, vivia os seus
dias numa indescritível e dolorosa solidão. Conversava apenas com os santos do
seu oratório, os anjos voando ao redor, com a ventania do entardecer.
Para se ter
uma ideia, raríssimas vezes tinha colocado os pés na cidade. Sorvete era bicho,
butique também, e talvez se assustasse com os modismos da juventude e até da
velhice querendo ser jovem demais. Assim, era ausente da cidade e dela
praticamente nada conhecia. O que chegava ali era por encomenda, pela mão dos
outros.
Inigualável
trabalhadora, pois cuidando da criação, do plantio e da colheita, além do
cuidado na comercialização, ali mesmo, dos queijos, das compotas de doces e dos
bolos caseiros que fazia, amanhecia e adormecia nessa lide sem brecha para
outro modo de viver. Pensava em homem sim, queria um ali ao seu lado. Mas bastava
aquelas marcas no coração deixadas por um para temer os outros, e também outros
sofrimentos.
Talvez fosse
essa terrível solidão que a tornava com espasmos de verdadeira insanidade. Ora,
arrumar a casa, preparar iguarias e deixar tudo nos conformes para
receber convidados inexistentes, que jamais apareceriam ali, certamente que não
era coisa normal de se fazer com tanta convicção e prazer. Mas aquela não era a
primeira vez não.
Certa feita
colheu flores do campo durante três dias seguidos para enfeitar a casa para um
grande baile ao som de uma vitrola e vinis empoeirados. Noutra ocasião se
colocou diante do espelho por duas horas seguidas para depois abrir a janela e
ouvir serenata recebendo perfumosas flores. De ninguém.
Coitada da
mulher, da solitária solteirona. De vez em quando ficava sentada no meio do
tempo, debaixo do negrume da noite, sob a luz do luar, esperando o cavaleiro
amoroso descer numa estrela candente. Mas nada do que sonhava, planejava ou
desejava, jamais aconteceu.
E sempre
acontecia assim. Tudo pronto, ajeitado, devidamente servido, depois ela seguia
para sua velha cadeira de balanço, do lado de fora, rente à porta. E quem
chegasse, se acaso chegasse, sempre a encontraria de lenço enxugando lágrimas,
chorando. Esperando a solidão do dia seguinte. E do seguinte.
(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e cronista
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