Por; Rangel Alves da Costa(*)
AS
LÁGRIMAS DAS CARPIDEIRAS
Ao saber da
morte do mais conhecido e difamado mulherengo do lugar, o bondoso Padre
Inacinho se danou, com passos difíceis e doloridos nos seus quase oitenta anos,
pelos becos do lugar. Precisava conversar com a viúva.
Sua intenção
era implorar para que a mulher não deixasse de prantear profundamente o esposo
falecido, ainda que o mesmo, pelos atos pecaminosos terrenos, não fosse
merecedor nem de uma vela acesa nem de uma incelença. Até o velho sacerdote
conhecia histórias suas de arrepiar.
Tinha chegado
ao conhecimento do bom pastor que era intenção da viúva despachar o defunto pro
cemitério sem ao menos lhe oferecer sentinela. E tudo porque o enrabichado
adulterino, contumaz e deslavado, havia batido as botas exatamente no quarto de
uma quenga, em cima da cama de uma de suas tantas amantes.
Para a viúva,
em comparação aos sofrimentos que havia passado por aquele homem e as vergonhas
que também já havia experimentado, chegando mesmo a ser chamada de chifruda e
mulher de segundo uso, a morte do desgraçado era um verdadeiro alívio. Por isso
mesmo quanto mais cedo despachá-lo para a cidade do pé junto melhor. Ao menos
não tinha de suportar ficar olhando aquela cara safada parecendo sorrir de sua
viuvez.
Já estava
certa de fazer isso quando o velho sacerdote bateu à sua porta para as
condolências e para implorar que oferecesse àquela pobre alma uma sentinela
decente, um instante de despedida e reflexão sobre aquela inesperada partida.
Certamente uma ou outra alma bondosa acorreria até ali para o último adeus.
Diante do
padre, a mulher - que nem parecia com mostras de qualquer pesar - recolheu as
palavras duras presas na garganta e decidiu ouvi-lo cautelosamente. Este,
coitado, que se mostrava deveras sentido com o funesto acontecimento,
explicou-lhe que permitir a sentinela seria um ato cristão distante de qualquer
mágoa que ela pudesse ainda estar nutrindo por ele.
E disse ainda
que se ela quisesse se mostrar impassível, não chorar nem uma lágrima, não
soluçar nenhum pranto pelo falecido, que fizesse assim mesmo, pois não haveria
problema algum diante dos olhos do Senhor. Este compreenderia bem os seus
motivos.
E afirmou em
seguida que ela não se preocupasse, pois iria enviar até ali algumas mulheres
para pranteá-lo efusivamente, como um mar de lágrimas para uma pessoa tão
importante na terra e que tão cedo se ia. Ainda que o mesmo não passasse de um
desacreditado pecador. Por fim, citou a Bíblia, no Livro de Jeremias, 9:17,
confirmando a importância das carpideiras no pranteamento do luto alheio:
“Apressem-se
e levantem sobre nós o seu lamento, para que os nossos olhos se desfaçam em
lágrimas, e as nossas pálpebras destilem água”. Eis as palavras bíblicas, afirmando
que o sentimento verdadeiro pode ser despertado através da falsa lágrima do
outro.
Com efeito,
carpideiras são mulheres contratadas especialmente para chorar os defuntos em
velórios, sentinelas ou outro nome que se dê à despedida. Em troca de pagamento
em dinheiro, as profissionais chegam aos locais e começam a prantear largamente
o defunto, como se estivessem realmente chorando um parente morto. Afirmam que
tal atitude é capaz de despertar nas pessoas os sentimentos pela perda.
Por outro
lado, tais lágrimas artificiais e prantos disfarçados servem também para que
familiares do falecido, que verdadeiramente nenhum sentimento guardam pelo
acontecido, lavem suas mãos e repassem para outras pessoas uma ideia do quanto
era querido. Quer dizer, ao menos para os outros, muitas lágrimas de dor foram
derramadas.
Contratadas
pelo padre, verdade é que mal o defunto foi colocado na sala e as carpideiras
chegaram. Poucas pessoas estavam na casa, mas bastou que as falsas enlutadas
chegassem para que um barulho descomunal tomasse conta do quarteirão. Choro
alto, choro baixo, choro de todo tipo; lágrimas escorrendo de molhar a sala;
gestos de dor que chegavam aos espasmos e aos delírios. Aflição, a maior das
aflições!
Mas de
repente, ia uma carpideira, afastava o negro véu e tascava um beijo na boca do
defunto; depois outra ia e só faltava subir em cima do corpo morto; e mais
outra acariciava o homem e soltava palavras de amor, dizendo, dentre outras
coisas impublicáveis, que não podia mais viver sem os seus beijos, sem as
noites de amor, sem as safadezas que ele era mestre em praticar.
Desconfiada,
olhando tudo dum canto, quando o chororô já havia chegado às raias das
explícitas declarações de amor, a viúva se dirigiu até junto delas e arrebanhou
o véu que cobria o rosto de cada uma. E lá estavam as quengas do falecido, as
amantes desavergonhadas do homem. E nesse instante, quando já não podiam
esconder mais nada, começaram a implorar para se despedir do gostosinho.
Saíram de lá
escorraçadas, debaixo de cabo de vassoura e de taca de couro cru. E o defunto,
quase à meia-noite, foi devidamente expulso de casa. E mandado pra onde merecia
ir e não sair nunca mais, segundo a viúva, desde então autoproclamada solteira
e completamente disponível.
(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e cronista
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