Por: Rangel Alves da Costa(*)
SERTANEJOS
DE OFÍCIO E ARTE
As mãos
sertanejas, muitas vezes magras, ossudas, calejadas, tão afetas aos clamores e
orações, a segurar rosários e afastar poeira, são também as mãos de tantos
ofícios e tantas artes.
Eis que as
mãos não servem apenas para segurar no cabo da enxada, da foice, do machado ou
do enxadeco, nem para lançar facão em toco de pau, cortar palma, juntar graveto
para acender fogo de chão.
Os dedos
apertam a taboca do pífano, batem o tambor, correm os teclados da sanfona,
manejam o triângulo, tocam na aba do chapéu para convidar moça bonita para o
forró. E também dedilham viola em noite enluarada.
As mãos se
erguem em adeus, lançam a sela no lombo do animal, abrem a cancela, levantam o
berrante para o diálogo com as vacas e bois. Seguram na caneca de tanta sede,
levam à boca o pão, abrem a porta e janela para bendizer a vida, ainda que tão
marcada pelo sofrimento.

Dizem das mãos
sujas de sangue dos bandoleiros das caatingas, das mãos covardes das volantes
puxando o gatilho pra qualquer um. O velho coronel estendia a mão e dispunha
sobre a vida e a morte. Padim Ciço benzia, o Conselheiro vociferava com a cruz
estendida na mão.
Contudo, mãos
diferenciadas existem naqueles rincões adentro. Desde os tempos mais antigos
que as mãos superam as tecnologias, os instrumentos que ainda não existiam por
lá. Assim aconteceu com as parteiras com suas mãos abnegadas e cheias de sopros
de vida. Que o diga Zefa da Guia. De suas mãos nasceu uma nação sertaneja.
Não sou tão
velho assim, mas de histórias sei que até hoje encantam ao recordar como tantas
mãos, ora tocando no barro ou transformando a madeira, o couro, o ferro e
outros elementos, enriqueceram a região sertaneja de utilidades e benefícios,
porém sem jamais imaginar que produziam verdadeiras obras de arte.
Coisas
simples, algo assim como barro visguento de ribeirão, toco carcomido de pé de
pau, couro urdido da bicharada morta em véspera de feira, folhas de flandres ou
pedaços de ferro, dentre tantos outros instrumentos colhidos ali mesmo no
sertão, tudo servindo para dar vida a belas e utilitárias peças artesanais.
A velha
Benvinda, viúva mãe de extensa filharada, dava de comer e vestir aos seus com
aquilo que suas mãos negras produziam com o barro encontrado nos tanques, poços
e açudes, mas também com a argila molhada de fundo de quintal. Mexia o barro,
sentia a liga, o visgo, conhecia o ponto do cuidadoso manuseio.
Colocava um
monte de barro diante de si, sentava num toco de pau e não demorava muito para
que a argila marrom ou acinzentada fosse ganhando formato. E logo surgiam potes,
cuias, panelas, alguidares. Tudo secado ao sol sertanejo, o passo seguinte era
colocar os objetos em forno também artesanal e esperar o cozimento até cada
peça ganhar uma feição de dourado envelhecido.
Pelas calçadas
de antigamente as mulheres sentavam ao entardecer com suas almofadas para
manusear os bilros e lenta e pacientemente fazer surgir bordados maravilhosos.
Mãos hábeis mexiam em carretéis, colocavam dedais, seguravam agulhas e, ponto a
ponto, teciam colchas, toalhas, enfeites de cama e mesa. Hoje ainda existem as
artesãs, mas não com as mãos artisticamente cuidadosas de antigamente.
Brasilino,
esposo da doceira Baíta, sempre se mostrou um inigualável mestre no curtimento
e manuseio do couro cru para o fabrico artesanal de arreios, gibões, chapéus,
alforjes, embornais, sandálias e rolós, tudo que dissesse ao cotidiano
sertanejo de vaquejada e montaria. No mesmo ofício trabalhava Seu Ercílio, só
que especializado em selas ricamente adornadas.

Zé Rosa
possuía uma serraria de onde saía não só portas e janelas, mourões e cancelas,
mas também baús e todos os objetos de madeira que o sertanejo precisasse no seu
dia a dia ou para dar comodidade à moradia. Era também o fabricante oficial das
urnas funerárias sem luxo ou brilho algum. Apenas a madeira chorosa.
Certa feita,
estando um circo de passagem por minha terra - e filho de prefeito que era -
fiquei comovido com a situação de uma mocinha rumbeira e pedi para que meu pai
autorizasse a Zé Rosa a construção de um baú para guardar os sonhos daquela
menina. Depois ganhei um beijo de presente. E fiquei apaixonado, um moleque
tomado de impossível amor.
Mais
recentemente surgiu naquelas plagas aquele que hoje é um dos maiores artesãos
de Sergipe. Trata-se de Antônio, ou Mestre Tonho, um moço humilde que tem o dom
de transformar a madeira bruta em verdadeiras relíquias. De suas mãos surgem
santos, beatos, cangaceiros, sertanejos como o próprio artesão, toda uma
família da raça que é sua. Que é a minha também.
São tais mãos
que, na maestria da transformação, merecem receber os aplausos de outras, de
todas as mãos, ainda que já não exista mais nenhuma panela feita por Dona
Benvinda ou que os órgãos públicos de cultura não deem o devido valor à arte do
Mestre Tonho. E tampouco dos novos artesãos que vão surgindo. E é uma pena que
tudo sempre aconteça assim.
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em
"Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros
contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e
"Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada
sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão -
Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do
Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor:
Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Se você gosta de ler histórias sobre "Cangaço" clique no link abaixo:
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Faça uma visitinha a este site:
http://cantocertodocangaco.blogspot.com
Observação:
Este
endereço tem a palavra "Cangaço", mas não tem nada a ver com o tema,
foi um erro no momento de sua criação. Ainda não conseguimos fazer outro link
de acordo com o material postado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário