Por: Rangel Alves da Costa(*)
A
CASA
A casa. Lar
que era vivo e transbordante nos tempos idos, com portas e janelas
abertas, pessoas chegando e saindo, fumaça subindo da lareira e cheiro de café
torrado ao entardecer.
A casa. O
ninho familiar, com pessoas vivendo os seus destinos, compartilhando instantes
de alento e desalento, sem imaginar quanto o tempo vai transformando a
existência, tornando solidão aquilo que era tão presença.
“Menino
cuidado com pingo de chuva, pra cair gripado e febril é num instante. Menina
venha cá arrumar essas bonecas dentro da casinha. Pensa que boneca de pano não
tem sentimento, é? Maria coloque o café no pilão e depois estenda a roupa no
varal...”.
“Zezinho, já
avisei que não quero ver você subindo sozinho naquele cavalo alazão. O bicho
ainda tá brabo, arreliento, e é arriscado por demais que desembeste com você em
cima. Também não quero que saia por aí de arapuca na mão pra pegar passarinho.
Tem cobra e bicho perigoso por todo lugar. Se quiser brincar que vá correr na
malhada com seu cavalo de pau ou cuidar da sua fazenda de ponta de vaca...”.
“Mãe, Zezinho
roubou o cabo de minha vassoura. Mãe, eu vi Aninha pegar seu talco de pó pra
botar nas bonecas dela. E também saiu do quarto com uma alfazema escondida. E
também ouvi quando conversava com uma boneca e dizendo que um príncipe
encantado qualquer dia vai aparecer na janela do quarto dela. E que vai mandar
o bicho-papão ficar debaixo de minha cama...”.
“Cale a boca
vocês dois. Mas quem já se viu duas criaturinhas iguais a vocês duas. Um vem e
diz que a outra fez isso, a outra vem e diz que o outro fez aquilo. Mas que
coisa mais feia. Agora venha cá Zezinho, e depois venha você Aninha, pois quero
saber direitinho dessas histórias. E vão preparando o lombo...”.
Os anos foram
passando e a movimentação na casa continuava intensa, mas as vozes tomavam
outros tons, os gritos já não eram da criançada nem dos pais ordenando a
convivência. Outras palavras, e até alvoroços, começaram a se espalhar pelas
paredes e arredores.
“Corra, corra
Zezinho, vá chamar o doutor. Aninha se apresse aqui, me ajude a abanar sua mãe
que parece sufocada, sem um pingo de ar. Abra a janela, tire essa cortina da
porta. Faça uma garapa, traga aquele chá. Abane aqui que ela parece que nem
pode mais respirar...”.
“Corra aqui
pai, chega, venha logo pelo amor de Deus. Não estou sentindo mais nenhuma
respiração. Será que ela morreu, será que ela morreu? Responda, será que ela
morreu? Ela não pode morrer, ela não vai morrer. Será que ela morreu? Responda,
responda pelo amor de Deus...”.
No mês
seguinte o pai não suportou a dor do luto e também faleceu. Estava de lenço à
mão sentado numa cadeira na varanda quando pendeu a cabeça para o silêncio da
vida. Parecia sorridente na feição envelhecida mil anos em poucos dias. Quando
a filha encontrou-o assim, talvez já caminhando em busca de sua amada, pela
última vez um grito ecoou na casa.
Foi o último
grito, mas cujo som continua ecoando nas sombras escondidas do passado. Apenas
os dois irmãos continuando ali, apenas as palavras inevitáveis eram
pronunciadas.
“Não suporto
mais viver aqui nesse sofrimento. Vou embora daqui. Vou morar na casa de Tia
Tonha, lá na cidade. Só tenha pena de lhe deixar sozinho aqui. Nessa idade e
ainda não pensou em casar. Parece que nossa sina é viver na solidão pela
vida...”.
“Também vou
sentir muito sua falta. Mas também sei que não pode continuar nessa situação de
desalento. Ninguém vive feliz numa casa que só traz tristeza e dor no coração.
Olho pro lado e parece que vejo nossa mãe, olho pra outro e sinto a presença do
nosso pai. E eles olhando tudo pelos retratos na parede. Mas vá. Também não vou
demorar aqui não. Vou vender tudo, entregar a sua parte e depois penso que
estrada tomar...”.
Vendeu a casa.
Quem a adquiriu nunca usou como habitação. Os anos foram passando e tudo
envelhecendo, se deteriorando, numa dolorosa paisagem. As janelas abertas, a
porta caída. Folhagens mortas sendo levadas pelo vento e ali fazendo moradia.
Tudo abandono e solidão, apenas a ventania zunindo triste ao redor.
Quando chegava
o entardecer um cheiro forte de café torrado era sentido por quem passava ao
redor. E vozes, e vozes na noite. E depois um grito desesperado. E novamente o
silêncio dos tempos.
(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e cronista
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