Por: Rangel Alves da Costa(*)
SINHÁ
FILÓ DIANTE DO ESPELHO
Depois de
muitos, mas muitos anos mesmo, Sinhá Filó lembrou que mantinha um espelho
pendurado numa parede tomada por tralhas e velhos cortinados. Não se sabe ao
certo porque somente agora se lembrou de sua existência.
Não se
recordava quando nem com quantos anos, mas a última vez que havia se olhado no
espelho ainda era jovem, possuía a pele firme e delicada, numa formosura que
até a própria dona dos suaves traços sorria orgulhosa e cheia de encantamento.
Era bonita
mesmo, linda de se dizer, como se dizia por lá. Entre o moreno e o
esbranquiçado, sua pele era de matiz queimada de sol, jambeada, trigueira. Pele
de índia, cabelo de índia, moça interiorana ou flor desabrochando na aridez do
lugar. A prova maior de sua lindeza estava no ciúme causado perante todas as
outras mocinhas do lugar.

Por essa
época, mirar-se no espelho era desejo e satisfação, era prazer de refletir a
beleza de sua idade. Certa feita, algum tempo depois, cuidadosamente se olhou e
dessa vez o semblante satisfativo não apareceu. Pelo contrário, ficou
entristecida ao perceber marcas da idade delicadamente surgindo.
Depois disso
não ansiava mais mirar o espelho, já não sorria nas vezes que ficava diante
dele. Passou a procurá-lo muito mais para afastar seus tantos temores de rápido
envelhecimento do que qualquer outra coisa. Assim, o que era prazer passou a
ser ofício de reconhecimento das marcas surgidas na sua feição.
Um dia, depois
de passar a mão pelo rosto e tentar avistar alguma marca indesejada, resolveu
nunca mais retornar ali, nunca mais se olhar para ver como estava sua feição.
Decisão impensada, pois não precisava agir assim. Continuava jovem bela, de
corpo firme e atraente, a pele viçosa de pétala. Só que não mais na textura de
outros dias, tempos atrás.
Quando um
jardineiro teve a sorte de casar com a bela flor, Filó mudou de casa levando
consigo aquele espelho. Colocou véu e grinalda para o esponsal, foi pintada e
enfeitada, mas sem jamais abrir os olhos diante dele. Mas não se esqueceu de
mandar embrulhá-lo cuidadosamente para a mudança.
Mas o que
pretendia Filó com o espelho se tencionava nunca mais abrir os olhos diante do
seu refletir tão verdadeiro? Se alguém perguntasse diria que apenas uma
lembrança dos bons tempos da meninice, mas a verdade era outra, e bem diferente
desta. Achava que a sua mocidade, sua beleza, seu lindo rosto e seu doce
sorriso permaneceriam ali escondidos, guardados até quando quisesse. E um dia
qualquer poderia pedir ao espelho para refletir seu passado.
E quando isto
acontecesse não seria refletida perante o momento, mostrando rugas, cabelos
brancos, outra face com suas marcas do tempo, mas apenas aquilo que queria ver,
que era a beleza de antes, como a mais bela das fotografias. Nunca disse a
ninguém, mas era exatamente assim que pretendia fazer um dia. Quando já
estivesse velha, consciente das tantas mudanças sofridas, retiraria os panos de
cima e pediria ao espelho para rever seu passado.
Tempos após,
depois da partida do seu fiel jardineiro e restando apenas a companhia de seus
três gatinhos e do ratinho de estimação, estava sentada na sua cadeira de
balanço diante da janela da tarde quando se lembrou do espelho. Pensamento que
veio acompanhado de estremecimento, de medo de reencontrar-se, de avistar-se
novamente tão jovem e tão bela. Apenas rever como era; jamais sentir como
estava agora.
Como já estava
escurecendo, apenas trouxe o espelho enrolado em panos e colocou-o na parede.
Espelho grande, antigo, moldurado, deu um trabalho danado a Sinhá Filó. Somente
na manhã seguinte, quando a casa já estivesse iluminada de sol, retiraria os
panos e de olhos fechados pediria que mostrasse sua feição e seu jeito de ser
de outros tempos, um tempo muito distante daquele de então.
Acordou
cedinho, fez as orações, conversou um tiquinho com o galo velho, jogou água nas
plantas medicinais do quintal, depois foi cuidar do café, do cuscuz, do ovo de
capoeira. Mais tarde, depois do banho e do asseio, do leite de colônia
derramado, abriria a porta e a janela, avistaria o mundo do outro lado, estaria
pronta para um novo dia. E também para tirar os panos de cima do espelho.

Quando a sala
ficou iluminada se encaminhou perante o velho amigo. Fechou os olhos e puxou os
panos, em seguida fez o pedido, verdadeiramente implorando para que mostrasse
sua feição de outros tempos, da meninice, da beleza radiante, da meiguice em
pessoa. E depois abriu os olhos.
Tomou-se de
espanto, não se reconheceu, tampouco sabia quem era aquela velha ali espelhada,
quando deveria estar enxergando sua feição na mocidade. Perplexa, assustada com
aquela estranha cheia de rugas, de cabelos brancos e olhar sem brilho, percebeu
que uma lágrima escorria naquela velha do espelho. E sentiu que chorava também.
Passou a mão
para enxugar os olhos; a velha do espelho também. E depois saiu em direção à
sua cadeira ao lado da janela, cabisbaixa, pensativa. Enfim disse a si mesma
que tudo faria para que a velha do espelho não derramasse mais uma só lágrima
de saudade. Pois só poderia ser saudade o que ela estava sentindo.
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em
"Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros
contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e
"Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada
sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão -
Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do
Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor:
Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
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