Por: Rangel Alves da Costa(*)
MULHER
E ESCRAVA: O SENHORIO AMOROSO
De
descendência sudanesa, pois filha de pais escravos oriundos da Costa da Guiné,
com etnia ioruba, a bela escrava nasceu em meio aos horrores da chibata, do
açoite, dos gritos de dor, da desumana vida escrava na senzala do Engenho de
Flores. Que nome para um engenho!
Engenho
portentoso e de poderoso senhor. O grande latifundiário, dono de terras
canavieiras a perder de vista, levava sua vida a manter na rédea suas posses,
cujas dimensões faziam os seus olhos brilhar do alto da escadaria da
casa-grande. Era também de lá que lançava o olhar em direção à senzala.
A
grandiosidade do engenho dizia do tamanho da senzala, um arruado de pequenas e
miseráveis construções que se espalhavam pelos quadrantes adiante, muito atrás
da igrejinha erguida na pedra e no sangue negro. Diziam que as paredes eram
sustentadas por dedos negros extirpados, pedaços de couro, ossos retorcidos
pelos castigos. Pedras lavadas no sangue.
O senhor de
engenho olhava em direção à senzala, mas querendo sempre avistar o que
acontecia ao redor de um daqueles miseráveis alojamentos enfumaçados. E o olho
reluzia e o coração apertava quando avistava a linda flor negra. Gostava de
vê-la, de apreciar ao longe aquele corpo negro de lindeza incomparável e curvas
perfeitas.
Da escrava,
uma jovem de beleza que nem as durezas da vida e os sofrimentos impostos pelas
condições deploráveis de vida conseguiram apagar, era senhor e amante. Amante
sim, forçadamente amante, pois dentre as tantas escravas que podia escolher
para saciar seu animalesco instinto sexual, somente aquela negrinha lhe havia
domado o coração de pedra e espinho.
Casado, e bem
casado aos olhos da sociedade conservadora de então, com filhos que nada faziam
na cidade grande senão gastar fortunas em noitadas nos cabarés, o senhor fixou
moradia ali mesmo no engenho, ao lado da esposa e de um batalhão de serviçais
negros, de onde era mais fácil e mais rápido comandar tudo com mão de ferro.
Nem a morte
prematura da esposa tornou seu coração mais humano. Pelo contrário, se tornou
ainda mais duro, arrogante, violento, ameaçador. Mesmo viúvo, passou a ignorar
toadas as escravas que lhe prestavam serviços sexuais nos arredores do casarão.
Uma benção para estas, pois cada escrava escolhida, geralmente uma atraente
mocinha, voltava chorosa para a senzala, toda retorcida, com o corpo lanhado,
sangrando.
Alguns anos se
passaram assim, com o homem na sua devastadora solidão. Comportamento, aliás,
que o tornava num verdadeiro barril de pólvora. Parecia mesmo que havia perdido
de vez qualquer sentimento ainda existente, pois se alimentava do sofrimento
escravo, de cada chibatada que mandava dar nas costas de inocentes, de cada
negro que apodrecia gemendo no tronco.
Até que um
dia, do alto da escadaria, avistou uma negrinha passando adiante e se
escondendo ao perceber que estava sendo olhada pelo seu terrível senhor. Não
demorou muito e ela fora trazida até ali e jogada aos pés. O capataz
encontrou-a assustada por detrás da igrejinha e puxando-a pelos cabelos disse
que o seu senhor precisava avistá-la de perto. E foi logo avisando que coisa
boa não podia ser, e que por isso mesmo fosse logo preparando o lombo e o resto
do corpo. E depois gargalhou sadicamente.
Diante do
senhor, de cabeça quase rente ao chão, a bela escrava se condoía por dentro
para não chorar antecipadamente. Não queria chorar de jeito nenhum. E quando
foi ordenada que levantasse encontrou em sua frente a terrível face do temível
homem. Este mandou que o capataz se retirasse e começou a vasculhá-la de cima a
baixo com um olhar diferente, num misto de perversão e encanto.
Depois, num
gesto atroz e instintivo, arrastou-a pelo braço para o interior do casarão. Ali
mesmo na sala da frente mandou que tirasse a roupa e beijasse os seus pés. Ela
retirou cada pedaço de pano, mas em seguida disse que tinha nojo daquelas botas
malditas. No mesmo instante recebeu um bofetão e depois arremessada ao chão.
Ali mesmo ele a possuiu como bem quis e as forças permitiram.
Nessa noite, e
ainda na noite seguinte, o senhor de engenho não conseguiu dormir pensando
naquela negrinha tão linda, de corpo perfeito, e sua, pois sua escrava. Virava
copos e mais copos de vinho, acendia charutos, olhava da janela em direção à
senzala. Aquilo não era normal, pensou. Não podia ser. Será que estava gostando
da escrava, daquela negrinha cheirando a fumaça de senzala?
Estava sim. E
apaixonado. No terceiro dia mandou que a trouxesse até ali, mas que fosse sem
qualquer tipo de judiação. Encontrou um recorte de pano guardado no quarto, fez
um cuidadoso embrulho. Diria que aquele presente era pra ela saber que não a
maltrataria daquela vez. Assim seria feito. Os olhos odientos do coronel
começaram a brilhar assim que avistou a escrava chegando.
Assim que
subiu a escada e se pôs diante do senhor, dentro da sala e sem a presença do
capataz, ela foi logo tirando a roupa e dizendo que ainda estava dolorida,
porém suportaria ser usada como ele quisesse. E vê-la novamente nua, ainda mais
maravilhosamente bela, fez o senhor tomar uma inimaginável atitude. Dobrou seus
joelhos ao chão e beijou os pés da escrava. E em seguida, diante do acontecido,
ela deixou-se abraçar.
Contudo, nem
mesmo o amor tem o dom de afastar de certos corações os resquícios da
ignorância, do apego ao passado e ao poder, dos instintos rudes e desumanos.
Ainda que completamente apaixonado, deixando-se até comandar pelo que a
negrinha queria, exigiu apenas que uma coisa não fosse modificada naquela
situação: ela continuaria sendo sua escrava.
E continuaria
na condição de escrava, vivendo na senzala, porque seria impensável que a elite
açucareira conservadora chegasse ali para visitas e o encontrasse em situação
quase conjugal com uma escrava. E ela não podia confrontar tal resolução
porque, efetivamente, continuava sendo sua escrava. Mandava nele, mas não nas
suas relações de poder e de manutenção de status.
Mantendo-se
cada vez mais apaixonado, um dia o homem mandou buscar um padre para celebrar o
casamento às escondidas. Não na igrejinha, ali mesmo no casarão de portas
fechadas. E depois de religiosamente tornar-se esposa do senhor de engenho ela
voltou para a senzala, para o convívio com os seus. Assim fazia todos os dias.
Ainda era
escrava, continuava escrava. Tinha esposo, que também era o seu dono.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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