sábado, 19 de janeiro de 2013

MEMORIAL DA CATINGUEIRA (Crônica)

Por: Rangel Alves da Costa(*)
Rangel Alves da Costa

MEMORIAL DA CATINGUEIRA

As folhas esvoaçam nos calendários, os anos envelhecem e recolhem-se ao esquecimento, tudo passa, muito morre ao redor, mas ela continua por lá, no lugar de sempre, imponente ainda, mesmo que agora tão magra e triste pela sequidão que desola. Nunca mais flor amarelada, tão linda flor.
Todo mundo a conhece. Gente, bicho, alma do outro mundo. Não há um ser vivente, e mesmo os que já se foram, que já não tenha lhe avistado, descansado no seu sombreado, amarrado animal pra descanso, colhido folhas e galhagens. Catingueira-Mãe, velha catingueira.

Os livros falam de sua existência em meio à vegetação, mas nada comparável ao prazer do vivenciamento de sua raiz profunda e perdida, do seu tronco recurvado e de suas galhagens magricelas. Recolhi as folhas pra fazer um chá. Mas não há remédio pra saudade, minha velha catingueira.


Sim, os livros a tratam com admiração merecida. Dizem eles que se trata de planta cujo nome científico é Caesalpinia pyramidalis tul, da família Leguminosae caesalpinoideae, cuja espécie é abundante na região nordestina, principalmente no semiárido sertanejo. No sertão nasce e cresce sempre magricela, parecendo raquítica, mas num vigor que a torna quase eternizada.

Mas a vejo bem diferente dos livros. A catingueira do meu sertão é grandiosa, imponente, frondosa, infinitamente bela. Outros que olhem e vejam a árvore pequenina, miúda, de braços finos e retorcidos e folhas pequeninas e dispersas. Tanto faz, pois a concebo como o grande mandacaru sem espinhos, como majestoso símbolo sertanejo.

Duvido que autêntico sertanejo não tenha a mesma concepção. Para todos a catingueira representa o sertão em tudo. A aparência frágil, mas de porte inabalável; a magreza e o aspecto entristecido, mas de força e vivacidade surpreendentes; aquele ar solitário de quem vive ao desamparo, mas adorada e visitada por todos.

Ora, a caatinga só tem esse nome em sua homenagem, porque existe como um marco naquela vegetação. E por mais que ao seu redor ainda existam umburanas, angicos, craibeiros, bonomes, aroeiras, cedros, quipás e outras espécies bem mais fortes e vistosas, é na sua face, na sua feição tão sertaneja, que repousa o significado da existência de tudo.

Tudo e todos conhecem e são amigos da catingueira. O passarinho ali faz ninho, descansa, faz ponto de apoio para tantos voos; codornas, nambus, sabiás, rolinhas fogo-pagô, não há bicho de asa e pena que dali do alto de suas galhagens não tenha estado mirando a natureza ao redor, os mistérios da mataria, a presença do intruso.

Serve de marco, limite, fronteira. Da catingueira adiante é terra de um, já até o seu tronco é chão de outro dono. Mas ela não tem dono não, pois patrimônio, árvore adotada por todos e de serventia a qualquer um que chegue ao seu reinado ou que passe diante de sua presença.

Ali, no seu tronco fino e desajeitado, o cavalo, o burro e o jumento são amarrados. O boi brabo também. O comboeiro passa e é debaixo de suas galhagens que desmonta para descansar; os vaqueiros estendem nos seus braços as indumentárias de couro, chapéus, alforjes e cantis e sonham poucos instantes vaquejando nas estrelas.

Ali no seu sombreado Capítão Virgulino, o Lampião, parou para decidir por qual vereda seguir. Tão amigo que era da catingueira que duramente repreendeu um cangaceiro que queria treinar pontaria na sua pele cinzenta pela estiagem. Os soldados da volante, ao passar por ali, cheiravam até seu tronco para ver se sentiam a presença dos cabras de Lampião.


E no seu tronco há um marco de um amor tão antigo quanto o próprio tempo. Anos após ano as pessoas encontram o mesmo coração desenhado. Um dia, não se sabe quando nem quem, alguém tomou do canivete e com cuidado artesanal foi riscando a carne magra e desenhando um perfeito coração. E no meio escreveu o nome do seu amor: sertão.

Ainda hoje o coração continua perfeitamente desenhado na velha catingueira. E talvez seja isso que a deixa ainda mais vaidosa. E que vaidade bonita, que belo amor por esse sertão. Meu sertão.
  
(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.


Poeta e cronista
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