Por: José Romero Araújo Cardoso(*)
Josué
de Castro teve uma infância bastante pobre em sua cidade natal, Recife, capital
pernambucana. O eminente cientista brasileiro, que na verdade se transformou em
cidadão do mundo, sentiu na pele o significado do que é passar fome e
privações, não podendo desfrutar de melhor qualidade de vida em razão de
condições financeiras limitadas, tendo em vista que era filho de um migrante
paraibano da seca de 1877-1879 que saiu de Cabaceiras para o Estado de
Pernambuco, a pé, intuindo saciar a fome que o deteriorava do ponto de vista
físico-psicológico.
O humilde nordestino que, com grandes esforços, se formou em medicina aos 21
anos e em Filosofia aos 29 anos, acompanhou de perto o drama da fome bem perto
de sua casa, quando atentamente observava o cotidiano dos catadores de
caranguejos dos mangues dos rios Capiberibe e Beberibe. Conforme depoimento do
próprio Josué de Castro, inúmeras vezes fora acordado, quando das cheias dos
rios que cortam o Recife, pelos pequenos animais que habitam os mangues.
Os lamentos diurnos e noturnos das crianças famélicas, filhas daquelas pessoas
que dependiam da coleta do caranguejo para buscar a sobrevivência, as quais
Josué de Castro notou semelhanças inequívocas com os hábitos naturais do
crustáceo, eram ouvidos com extrema emoção pelo homem que se notabilizou
mundialmente quando do lançamento de “Geografia da Fome” (1946) e “Geopolítica
da Fome” (1951).
Josué de Castro ousou quebrar tabus, destruir mitos e dogmas acerca das bases
da formação social brasileira, nas quais a negação da fome era constante a
integrar análises pseudocientíficas daqueles que o antecederam, pois muitos
analistas defenderam a caracterização lombrosiana como fundamento explicativo
de muitas revoltas que indubitavelmente tiveram na fome um dos principais
elementos catalisadores do fomento aos distúrbios sociais em determinadas
épocas, a exemplo da efetivação de uma sociedade alternativa surgida às margens
do rio Vaza-Barris no final do século XIX.
Josué de Castro demonstrou extrema coragem e ousadia em sua obsessão de lutar
contra a fome, pois analisá-la sob o ponto de vista humanista significou
descortinar as contradições em macro e micro escalas que se encontram ocultas
em sociedades estruturadas sob a égide das extremas diferenças interclasses.
Influenciado pelas lutas e idéias de Josué de Castro, o geógrafo brasileiro
Milton Santos elegeu a análise espacial como fundamento às denúncias acerca das
distorções sociais, pois, ao lado da fome, o espaço construído pela ação
humana, efetivado através das relações sociais de produção, também revela
pobreza e riqueza de uma sociedade.
A fome, conforme o grau que a mesma se apresenta para determinadas populações,
revela o grau de desenvolvimento de um País, de uma região, de um Estado, de um
município e os contrastes no que tange ao controle da produção e dos meios de
obtê-la em uma determinada época.
Avaliando como a fome se manifesta se pode entender a relação entre
beneficiados e excluídos em uma sociedade, pois, através do consumo
avaliar-se-á se o privilégio nutricional é democrático ou circunscrito a uma
minoria, a qual, sobretudo em países periféricos, destaca-se como herdeira da
própria formação sócio-econômica-espacial.
Infelizmente a ousadia, a independência e o humanismo de Josué de Castro não
foram compreendidos pelos donos do poder no Brasil. As lutas do corajoso
nordestino que foi consagrado na década de cinqüenta como uma das mais
importantes personalidades do planeta não eram bem encaradas pelos
intransigentes que ainda hoje se beneficiam do drama da fome para se
auto-afirmarem na escala social.
Há mais de quarenta anos Josué de Castro
profetizou o avanço da fome em razão das mudanças incríveis propiciadas pela nova
ordem econômica mundial, sobretudo com relação a determinados espaços
selecionados do terceiro mundo.
O autor de clássicos das Ciências Sociais, os quais continuam atualíssimos,
constatou que haveria mudança radical quanto à fixação de populações de áreas
rurais para urbanas, as quais, não obstante o imperialismo dos latifúndios,
assumiam importantes papéis na produção de alimentos, pois a agricultura
familiar, ao contrário do agrobusiness, responsabiliza-se por majoritário
percentual do abastecimento do mercado interno.
A intensificação da fome nos dias de hoje, conforme raciocinou Josué de Castro,
poderia ter sido evitada se a ganância não tivesse a proeminência histórica que
segue a evolução humana desde a efetivação da propriedade privada e a
consolidação do Estado como mediador dos conflitos interclasses, a serviço dos
detentores do poder.
O mundo, isso ninguém pode duvidar, dispõe de recursos técnicos e financeiros
suficientes para resolver o problema da fome. Na verdade, ainda falta muita
iniciativa dos mais favorecidos para verdadeiramente solucionar um dos maiores
dramas da humanidade. Infelizmente níveis nutricionais satisfatórios ainda são
sinônimos de status e de domínios políticos, sociais e econômicos da parcela
privilegiada sobre a maioria desprovida de recursos mínimos que possa garantir
sobrevivência digna e honrada.
Impossível não lembrar, quando se completam quarenta anos que assinalam o crime
político que foi a morte de Josué de Castro em seu fatídico exílio na França,
que a contribuição referendada pelo mais proeminente cientista brasileiro se
reveste de profundo humanismo e amor ao próximo, pois lutar contra a fome e em
prol da paz fizeram desse ilustre cidadão do mundo referência no que diz
respeito à responsável condução da análise científica, a qual se deve
posicionar sempre em função do bem-estar da humanidade em todas as instâncias e
patamares que possam permitir a melhoria das condições de vida do gênero
humano.
José Romero
Araújo Cardoso. Geógrafo. Professor-adjunto IV da UERN.
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