Por: Rangel Alves da Costa(*)
A
IDEIA DE SERTÃO E O SERTÃO EXISTENTE
Não será
errôneo afirmar que o sertão pode ser visto sob várias acepções. De um lado,
aquele caracterizado nos livros de geografia, citado nos opúsculos de história
e estampado nas manchetes de jornais. De outro, o sertão romântico, bucólico,
fruto da idealização daqueles que o admiram e ali convivem.
Contudo, há
ainda o sertão em si mesmo, no seu percurso, na sua vida, para chegar ao que
hoje se apresenta. Este certamente está distanciado daquele outro sertão
idealizado e caracterizado, pois refletindo apenas a região nas suas veias
abertas e nas consequências provocadas pelas inevitáveis mudanças.

Neste último
aspecto, o sertão não mais se diferencia muito de outras regiões, de outros
lugares com características totalmente diferentes. Praticamente sumiram os
costumes e as tradições de seu povo, os modismos apagaram de vez os jeitos
matutos e sinceros de convívio, todos os vícios da vida moderna ali parecem
redobrados. Sem falar que o número de forasteiros já é maior do que a gente da
terra.
O verdadeiro
sertão, este mesmo que está sendo totalmente transformado pelas forças das
mudanças, é aquele da geografia tão conhecida. Sertão das terras áridas e
semiáridas, das estiagens que se prolongam por anos a fio, do bioma envolto
pela caatinga, plantas xerófitas como os cactos espinhentos, arbustos de porte
médio e galhos retorcidos; lar de vegetação refletindo os períodos
maiores ou menores de estiagens.
Este é o
sertão um dia desbravado a partir da beirada do rio, das margens do Velho
Chico, na incansável luta daqueles que adentraram a mataria, abriram picadas,
levantaram palhoças para o repouso ainda inseguro no inóspito meio. Vindos de
outras distâncias, fugindo das revoluções e perseguições, trazendo seu rebanho
ou somente o saco de sonhos, os colonizadores das áridas vastidões fincaram na
terra desconhecida a bandeira de um povo e sua luta.
Assim nasceu o
sertão, a partir dos caminhos abertos beira de rio adentro. Da luta
desbravadora dos primeiros habitantes, verdadeiros bandeirantes da sequidão, é
que o povoamento foi se alastrando. Uma casinha aqui, uma choupana ali, o
pequeno rebanho pastando acolá, e na terra a semente jogada para frutificar
quando as chuvaradas permitiam. Daí essa eterna semente refém das imprevisíveis
condições climáticas.
As tantas dificuldades
surgidas não impediram, contudo, que o sertão e o sertanejo se impusessem
perante as forças da natureza e construíssem uma identidade que mais tarde
seria reconhecida por todos: homem e terra brotando de uma só raiz, pois um tão
dependente do outro, tão reconhecido no outro, que tudo toma uma feição
orgulhosa demais por ser dali e ali resistir. Resistência, este poderia ser um
apelido para o sertão.

Também o
sertão da história, das guerras cangaceiras debaixo do sol, estrada e vereda
para o bando de Lampião e a volante cuspindo fogo; percurso da missão de
António, o Conselheiro, de cruz sempre erguida aos céus, abrindo caminhos pelo
meio do mato, fanatizando beatos, pregando contra as injustiças tantas; púlpito
e palanque para Padre Cícero, de um lado pregando a palavra divina e de outro
costurando acordos políticos.
Por muito
tempo o sertão pareceu imune às transformações do mundo lá fora, das distâncias
sulistas. Continuou prevalecendo as características inconfundíveis do
sertanejo, tendo por base a profunda religiosidade, o amor extremado pela
terra, a eterna luta pela sobrevivência em meio às secas e estiagens, o cultivo
das manifestações vindas de outras gerações.
Assim, era um
sertão de pequenos agricultores, trabalhadores na terra, vaqueiros, pescadores,
catingueiros em busca de caça, parteiras, rezadeiras, gente de ofício de sol e
de lua. Eram constantes as vaquejadas, as pega-de-bois, as quermesses, os
leilões festivos, os forrós nas salas de reboco, santas missões, inúmeras
manifestações simples e tão grandiosas como as pessoas do lugar.
Contudo, o
passar do tempo foi trazendo um calendário difícil demais para a vida
sertaneja. Não que tivesse de continuar sempre com suas cidadezinhas
interioranas, com as características demasiadamente pacatas do seu povo, com
aquele cotidiano que parecia o mesmo de sempre. Não. Mas o que foi entrando no
sertão sem bater à porta foi espantoso demais.
Verdade que o
sertão sempre teve muitos problemas a resolver. Desde o início de tudo que as
secas mais prolongadas provocam sofrimentos terríveis, causando fome, sede,
esturricando a mataria e provocando a morte de gente e bicho. Tais aspectos,
contudo, são conhecidos demais e combatidos na luta e na perseverança. Mas
combater o que sorrateiramente chega e se instala de vez, desfazendo tudo,
descaracterizando tudo, é muito mais difícil.
E,
infelizmente, o sertão e o sertanejo estão perdendo essa batalha. Mas os
adversários não são somente pessoas estranhas, o progresso que chega voraz e as
transformações que são impostas a todo custo. O próprio sertanejo cuidou de
desmatar, destruir grande parte de sua vegetação nativa, devastar as nascentes
e os leitos dos rios e riachos, extirpar as matas ciliares, aniquilar o seu
meio de sobrevivência. Para se ter uma ideia, quase não há mais bicho no mato,
passarinho voando, rio que corra gordo e bonito.
Não bastassem
as ações destruidoras do próprio homem da terra, a chegada dos sem-terra na
região representou o fechamento do caixão. Onde um sem-terra se assenta não
fica em pé nem a catingueira. Sem falar no problema social gerado por aqueles
que objetivavam resolver outro problema social. Inegavelmente que houve aumento
desenfreado da violência, esfacelamento nas relações sociais, instabilidade e
insegurança a cada passagem pelos seus caminhos.

É doloroso,
mas necessário dizer, que atualmente o sertão somente continua existindo como
tal pelo seu passado. Ora, quase nada do sertão existe mais. As relações
familiares são inexistentes, as amizades e os companheirismos de proseados nas
calçadas ao entardecer não são mais avistados, as pessoas se tornaram
desconhecidas umas das outras. Se no passado quase todo mundo sabia quem era
filho de quem, hoje ninguém sabe mais de ninguém.
E agora o
pior. O uso de drogas, o tráfico de entorpecentes, os roubos e os furtos cada
vez mais violentos, os assassinatos bárbaros, a prostituição em cada canto e em
cada idade, o desemprego, o alcoolismo, tudo isso virou normalidade no sertão.
Em tais aspectos, muitas vezes supera outras regiões do país.
Sou desse
sertão. Sou de Poço Redondo. As cruéis e devastadoras transformações ocorridas
impõem uma dolorosa afirmação: Tenho o mais profundo orgulho de ser sertanejo,
mas nenhum orgulho de vivenciá-lo como está.
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em
"Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros
contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e
"Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada
sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão -
Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do
Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor:
Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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