Por: Rangel Alves da Costa(*)
CANTO
DOLENTE DO ABOIADOR
No meu sertão, lá pelas bandas de
Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo, aboiador tem mais fama e é mais
admirado do que cantor famoso e da cidade grande. Ao menos deveria ser assim se
os tempos modernos não levassem ao esquecimento as tradições e as riquezas
culturais de um povo.
Podem acreditar, mas a verdade é
que sanfona, pandeiro, triângulo, zabumba, pífano, rabeca, berrante e viola
quase não têm mais acolhida. Sanfoneiro, violeiro, repentista, aboiador, nada
disso parece possuir mais importância. Contudo, a juventude vai ao delírio com
os cantores cabeludos de bandas medíocres, com os arrochas da vida, com as baianadas e
músicas de duplo sentido ou sentido algum.
Noutros tempos, um tempo de
cultivo aos regionalismos, às manifestações nascidas do próprio povo sertanejo,
de encantos e autenticidades em tudo que se fazia, os modismos tinham de
respeitar as raízes. Existiam os murmúrios da modernidade, mas o forró reinava
nos salões, nas salas de reboco, nas grandes festanças.
A viola
caipira tinha o seu lugar garantido nas rodas de amigos reunidos na malhada da
fazenda, debaixo dos pés de paus, ladeando as porteiras dos currais e as
cancelas de entardecer. Nas festas de vaquejada e pega-de-boi, o canto sublime
e dolente, o verdadeiro hino, era o aboio. Após o sopro do berrante, aquele som
mugiante pedindo licença aos deuses sertanejos, o aboiador começava sua
plangência.
Para quem
ainda não sabe, aboiador é o vaqueiro que entoa o aboio para guiar a boiada ou
para chamar os bois dispersos; é o sertanejo que entoa o seu canto sertanejo em
encontro de vaqueiros ou festas de vaquejada. De chapéu de couro e gibão,
sentimento profundo no coração, e pelo ar vai ecoando a canção da terra.
E o aboio, o
seu canto, é o chamado melódico, entoado, para atrair o gado, para conduzir ou
diante da bicharada. Ei, gado ê, ô... Mas também o canto monótono e choroso,
geralmente contando uma história sertaneja, ressoada noutros lugares festivos
dos sertões.
Não sendo de
uso exclusivo perante os animais e as festas de vaquejada, também era muito
entoado nos pés de balcão ao sabor da cachaça da terra. O cavalo à porta do
botequim e o vaqueiro lá dentro aboiando para platéia exclusiva de bebedores.
Mas geralmente nunca estava sozinho, pois sempre acompanhado de parceiros que
revezam as cantigas cheirando a bicho, a terra, a mato. Canto da catingueira,
cantiga da umburana, cantiga minha, minha cantiga.
Canto de aboio
é coisa singela demais, é eco que se espalha sertões adentro e é logo reconhecido
pelas matarias, pelos animais, pelos mandacarus e xiquexiques, pelos velhos
habitantes das taperas do fim do mundo. Mas reconhecido principalmente pelo boi
corredor, pelo garrote ligeiro, pois a voz que entoa a cantiga sertaneja outro
não é senão aquele vaqueiro tão conhecido. E no seu encalço já se lanhou pelos
escondidos da mataria espinhenta.
E foi um
desses vaqueiros, talvez o maior aboiador de toda região sertaneja, que já
envelhecido, alquebrado pelas durezas correndo atrás de boi valente e ligeiro,
que fez do cair da tarde, debaixo do umbuzeiro grande defronte sua morada, uma
despedida sem igual de sua vida de cantador sertanejo. E fez ecoar pelos
arredores o mais triste e dolente dos aboios, cuja letra era a mais expressiva
demonstração das mágoas de um aboiador.
“Ê, ê, ê, gado
ô, eiá...
Vaqueiro que
fui pelo mundo
Atrás da
bicharada perdida
Galopei a vida
num segundo
Sem pensar em
despedida
Mas hoje já
velho e cansado
Sem quem me
ouça aboiar
Sou cavalo
atrofiado
Sem poder mais
galopar
É com o
coração despedaçado
Que me despeço
do cantar
Só pedindo ao
meu Senhor
Para o sertão
nunca calar
O verso matuto
aboiador
ê, ê, ê, gado
ô, eiá...”.
E não aboiou
mais não. Na terra, mais não. Estava com os olhos cheios de lágrimas, mas não
chorou mais não. Segurou no tronco do umbuzeiro, subiu no cavalo ligeiro e foi
aboiar lá no céu.
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em
"Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros
contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e
"Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada
sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão -
Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do
Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor:
Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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