Por: Rangel Alves da Costa(*)
A
MOCINHA DO CIRCO
Folheando o
diário dos tempos idos, eis que me deparo com uma página que me traz uma doce e
triste recordação. Doce porque prazeroso ter vivido uma experiência tão
encantadora; triste por que... Depois eu conto.
De repente o
velho carro de som começou a circular pelas ruas da cidade anunciando a chegada
do circo. Logo se imaginaria que um carro tão velho assim, caindo aos pedaços e
com som difícil de ser ouvido a cinquenta metros, refletia bem as
características da companhia mambembe. E não foi diferente. Mas o locutor
anunciava:
“Atenção,
atenção, já se encontra nessa linda cidade o maravilhoso Circo Cigano, com as
mais belas atrações da face da terra. Palhaços, domadores, rumbeiras,
cuspidores de fogo, atiradores de facas, além de outras grandes atrações. E
exclusivamente para vocês a mulher barbada, o macaco que fala e o sensacional
homem sem cabeça, além da atração maior: a mulher invisível”.
A novidade
encantava não só a criançada como todos os habitantes do lugarejo. Povoação de
fim de mundo, longe de tudo, sem nada que permitisse fugir do cotidiano de sol,
calor, lua imensa, com as mesmas caras de esquina a esquina, tudo numa mesmice
danada, a chegada de um circo era realmente uma novidade maravilhosa.
As janelas se
abriam, as portas eram escancaradas, pessoas acorriam por todos os lugares para
ouvir o carro passar anunciando a chegada do maior espetáculo da terra. Ora, o
locutor também afirmava assim. E dizia ainda que dali a dois dias, após a arena
estar completamente armada, a estreia teria preços promocionais.
Meninote
ainda, também encantado com a atração, não consegui esperar os dois dias para
conhecer a armação do grandioso espetáculo. Seria doloroso esperar que já
estivesse completamente armado e pronto para estrear. Na manhã seguinte eu já
estava nos arredores das barracas, lonas e outras estruturas. E os olhos
curiosos passearam ao redor vasculhando aquilo que seria o Circo Cigano.
Contudo, o que
mais me despertou a atenção não foi nem a jaula vazia nem a pouca quantidade de
equipamentos que ergueriam e fariam funcionar o majestoso circo, como afirmado
pelo entusiasta (e mentiroso) locutor, mas sim uma bela mocinha saindo de uma
tenda armada nos arredores. E logo pensei se aquela era uma das dançarinas
então nem precisava de outras atrações.
Bonita mesmo,
a danadinha. Se eu não a tivesse encontrado saindo daquela tenda circense logo
imaginaria ser uma bela visitante, alguém que havia chegado ao lugarejo para
alegrar os olhos da rapaziada. De pele clara, cabelo comprido, esbelta, um
rosto tão singelo que mais parecia de bonequinha russa. Foi paixão repentina.
Mas coitado de mim, um molecote querendo demais.
Após o
encantamento, e com uma vontade danada de me aproximar um pouco mais e tentar
ouvir qualquer palavra de sua boca, decidi retornar e providenciar aquilo que
me pareceu ser o mais inteligente a fazer. Tomei banho, me perfumei, coloquei
roupa nova, vesti calça comprida, calcei sapato, passei brilhantina no cabelo e
cuidadosamente penteei. Tudo para parecer rapazinho.
Retornei
assim, todo arrumado e metido, mas principalmente tendo o cuidado de levar um
presentinho para a mocinha do circo. Era apenas um pequeno diadema que, por
força da paixão, cuidadosamente afanei dentre os objetos de enfeites de minha
irmã. Rodeando a tenda, não demorou muito e ela surgiu com balde à mão,
seguindo em direção a uma caixa d’água logo adiante.
Foi o momento
exato da aproximação. Corri e pedi para segurar a vasilha, dizendo que mãos tão
belas não podiam fazer tanto esforço. Contentamento maior, ela aceitou; e mais felicidade
ainda, sorriu e me convidou a assisti-la na estreia. E quando ofereci o diadema
recebi um abraço. Gelei, estremeci, já não sabia mais o que fazer. Sonhando
acordado, nem sei como retornei.
Voltei lá por
duas vezes no dia seguinte. Esperei, esperei e nada de encontrá-la. Deixei o
perfume para entregá-la depois, após a estreia do espetáculo. E no dia marcado,
assim que a bilheteria foi aberta, fui o primeiro a adquirir o ingresso. Também
entrei antes que todo mundo, numa ânsia desenfreada para vê-la aparecer no
picadeiro.
Assim que o
espetáculo começou, não demorou muito e foi anunciada a mais linda dançarina do
mundo. E era mesmo, pois era ela, coberta em pouquíssima roupa para a época.
Assim que entrou, e antes mesmo de cumprimentar a plateia, jogou um beijo em
minha direção. Foi a glória. Coração quis pular, fiquei totalmente entorpecido.
Talvez mais tarde pudesse beijá-la na face, pensei.
Foi a mais
aplaudida até o momento que o tão esperado atirador de facas foi anunciado. Ao
entrar, o homem pediu desculpas pela ausência de sua assistente que havia
repentinamente adoecido, mas a apresentação de seu número estava garantida com
uma jovem substituta. E esta não era outra senão a minha bela dançarina.
Ainda vestida
com as minúsculas roupas, o atirador de facas perdeu a concentração devida e,
pela primeira vez, errou o alvo. Atirou a faca e esta desnorteou, acertando bem
no coração da mocinha. A plateia sustou atônita. O mundo parou. E eu gritei.
A faca acertou
bem no coração da mocinha.
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas"
e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de
Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em
"Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e
ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel",
"Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço
Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos
para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro,
CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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