Por: Rangel Alves da Costa (*)
TAPA
NA CARA
Gosto de
ajudar pessoas, ouvi-las, procurar compreendê-las e amparar no que for
possível. Contudo, às vezes chega um ou outro com problemas difíceis demais de
resolver, principalmente quando se trata de intriga amorosa, de briga de namoro ou conjugal,
coisa de ciúme ou dor de cotovelo. Detesto quando isso acontece, mas enfim.
Não bastasse
isso, eis que me chega um conhecido e quase chorando me joga nas mãos uma
carta, escrita tremulamente à mão, e já amassada de tanto tocada, lida e
relida. Fiquei sem entender nada. Aliás, fiquei até espantado com tal gesto.
Sem saber o que significava a verborrágica missiva, não vi outra saída senão
perguntar. Coitado.

Nervoso, com
lágrimas nos olhos e voz embargada, quase não conseguia pronunciar nada, mas
acabou fazendo a revelação. E disse-me que o que ela – a namorada – havia feito
não se faz nem com um odiado ex. E logo ele que a ama tanto. E raivoso pelas
conversas de traição que ouviu, resolveu escrever a carta a ela endereçada. Ao
lê-la certamente sentiria como se estivesse tomando tapa na cara.
Depois direi o
fim dessa história, a reação dela e o que sucedeu após a leitura, mas antes
disso – e que o meu amigo me desculpe – transcrevo essa verdadeira pétala de
rancor amoroso. Por outras palavras, mostro do que uma raiva de amor é capaz.
Eis, nas palavras dele:
Quero ver você
contestar, contradizer, contra-argumentar o que vou dizer agora. Quero ver se
você sustenta uma réplica, fazer calar a verdade do que vou deixar bem clara
agora. Não é bofetada, mas sim tapa na cara para calar de vez sua ingratidão,
sua desonra.
Talvez eu
saiba por que se acha uma deusa, que pode fazer de tudo. Você diz que pode
voar, diz que pode transformar o que toca, apregoa que o mundo está aos seus
pés, proclama possuir as virtudes da vida, espalha aos quatro ventos que pode
calar o sorriso e entristecer coração. Esquece de dizer, contudo, que jamais
soube ser você mesma.
A ventania é
inimiga de cada passo que dá e logo se encarrega de apagar cada marca que deixa
na areia; os espinhos e pontas de pedras se redobraram para estar adiante,
cortando, ferindo, ainda que sabendo dá insensibilidade que leva consigo. As
curvas se recurvam, se alongam, tornam-se dificultosas, tudo fazem para não
vê-la passar.
Quem me contou
foi a brisa, a mesma brisa da tarde que jamais terá o prazer de sentir. E ela
me disse que a revoada se dispersa na sua presença, as borboletas querem voltar
ao casulo, os animais peçonhentos rejeitam seu calcanhar. A meiga e sublime
flor do campo, tão acostumada com a aridez, murchou ao saber que passaria pela
estrada.
Não sei se
percebe, talvez não, pois a capacidade de percepção da realidade não é dada aos
insensatos, dissimulados, desumanos, mas muito acontece assim que lança o olhar
em qualquer direção. O sol se fecha para as tempestades, a garoa se transforma
em vendaval, a nuvem branca se reveste de raio feroz. E a natureza entristece,
as folhas secam, as pedras se transformam em pó e se deixam levar.
Pensando que
está acima de tudo, se põe a planar sobre a cabeça dos outros, num passo que
não se sustenta no ar, ainda mais quando depende de alguém para fingir onde
está. Oh, quanta vaidade nesse coração leviano, quanto orgulho dentro desse
espírito que jamais encontrará salvação.
Joias,
brilhantes, diamantes, pedras douradas, perfumes, cheiros e aromas importados,
roupas vistosas e reluzentes, grifes e marcas famosas, uísques datados, vinhos
sem idade, finuras, frescuras. Tudo isso você diz que tem. Mas deixe alguém
entrar em sua casa e olhar os móveis, abrir a geladeira, destampar as panelas,
verificar as contas de água, luz e telefone. Deixa?
Não sei por
que tanta arrogância, tanta brutalidade, tanto egoísmo. Também não sei por que
tanto ódio contra quem só lhe fez o bem, tanto rancor devolvido a quem sempre
lhe estendeu a mão. A ti, dei a mão e os anéis, dei o chinelo que calça, a
roupa que veste, o batom que usa. E agora para beijar outra boca!
Ingrata, mil
vezes ingrata. Distante de ti encontrarei um amor verdadeiro, alguém que saiba
corresponder toda a fortuna que um amoroso coração possa entregar. E agora siga
sozinha pelos caminhos que quiser, se alguma estrada aceitar os seus pés. E
terá, a cada passo, todo o infortúnio que merecer.
Eis a carta do
amigo apaixonado. Paixão, amor recolhido, ciúme doentio, logo pensei. Mas bati
no seu ombro e disse que o mais justo seria que ele mesmo encontrasse coragem e
fosse entregar o escrito. E se esperasse um pouco até poderia sentir o sabor da
vingança, pois certamente ela se ajoelharia pedindo perdão, pois ali, muito
mais que um tapa na cara, era um projétil fatal. Menti. Logicamente
menti.

E o coitado
foi à procura da ingrata, levando na carta o tapa na cara. Mas eu soube depois
que nem conseguiu entregar. Diante dela se ajoelhou, chorou, implorou. E quando
ela perguntou o que era aquilo parecendo uma carta, o coitado disse apenas que
era um lenço para enxugar as lágrimas. E foi passando o tapa na própria cara.
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em
"Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros
contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e
"Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada
sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão -
Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do
Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor:
Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário