Por: Rangel Alves da Costa(*)
DO
NINHO DAS DELÍCIAS À CASA DA LUZ VERMELHA
A beata
entrava nos descampados, dava voltas e mais voltas, tudo fazia para não passar
nem perto daquela casa. Parecia uma cobra velha se esgueirando pelas locas de
pedras. O mesmo acontecia com a solteirona, só que esta olhava de longe pelo
canto do olho e começava a se benzer.
Quem via a
invicta nos benzimentos afirmava que os motivos eram totalmente outros. Não era
nada de esconjuranças nem irresignações diante daquela casa, mas pela carne que lhe fervia
por dentro só de pensar no que acontecia por lá. E logo ela, que dava o ouro do
mundo a quem descobrisse sua botija.
Certa feita, o
dissimulado do vigário das redondezas, querendo dar uma de defensor da moralidade
pública e da pudicícia daquelas mesmas que ele costumava levar para o coito da
sacristia, achou de querer formar, em plena missa, uma cruzada da decência
familiar para desalojar a velha cafetina que na casa mantinha residência e
comércio.

E nem precisa
dizer muito sobre o que ela oferecia ali, a preços triplicados ou diminuídos
segundo as posses dos clientes. Ao menos era isso que comentavam em segredo,
aos ouvidos sempre sujos das velhas e novas fofoqueiras, e dos imprestáveis
marmanjos também. O que não sabiam, inventavam sobre a Casa da Luz Vermelha.
A proprietária
do ambiente não suportava ouvir esse nome, Casa da Luz Vermelha, já que segundo
a mesma não se tratava de bordel chinfrim nem prostíbulo de puta barata nem em
fim de carreira. Certamente já não
enxergava bem, mas não se cansava de alardear que oferecia o que de melhor
havia em toda a região.
Daí que
aumentava em muito os seus já avantajados peitos para dizer que o nome do seu
peculiar comércio era O Ninho das Delícias. Talvez, num passado distante, até
que pudesse ter sido assim mesmo, um ninho ou jardim das delícias, um paraíso
carnal e de mulheres belas e apetitosas. Mas agora, depois que o coronelismo
deixou de ser a razão do lugar, não passava de um cabaré igual a qualquer outro
de beira de estrada ou beco de rua.
A única
diferença, e o que também mantinha um aspecto diferenciado, era o velho, porém
conservado e imponente casarão onde estava instalado. A velha proprietária
também não gostava que mencionassem isso não, mas tudo mundo na região sabia
que o dito prédio lhe havia sido presenteado por um famoso amante do passado,
nos idos de novinha quando, ainda bela flor da estação, chegou do interior
cheirando a lavanda barata e dizendo-se francesa legítima.
O Coronel
Querêncio Medrado lançou o olhar na sua Belle de Jour e ato contínuo soprou no
ouvido do ordenança mandando redobrar, a qualquer custo, a colheita de cacau.
Apaixonado, não mediria esforços para encher sua bela francesinha das melhores
roupas, joias e perfumes. Chamou-a ao seu
lado, mandou que sentasse no colo e pediu para que falasse alguma coisa bonita
em francês.
E ela baixou a
cabeça envergonhada e disse: Sei falá essa língua num sinhô. Sô moça matuta,
mai se o coroné quisé sei fazê uma coisa bem boa! São tais realidades da vida
que apaixonam qualquer um. E a simplicidade da mocinha fez o poderoso
latifundiário ficar mais apaixonado ainda, mais preso aos encantos do amor à
primeira vista. Então chamou o mesmo ordenança para mudar a ordem dada.
Agora era pra
não deixar que nenhum outro homem chegasse perto de sua flor de jabuticaba, que
ele estivesse por perto ou não. Mas resolveu não tirar a mocinha do cabaré,
apenas cuidando que mantivesse um quarto só dela e reservado às suas visitas
das quartas e sábados. Nos outros dias jagunços eram escalados para ficar por
ali vigiando se ela saía do quarto ou se algum atrevido tinha a petulância de
chegar até perto da porta.
O coronel já
estava envelhecido. Por mais que o amor o fizesse muito remoçado, ainda assim
não podia esconder as marcas da idade, das tantas lutas sangrentas para
assegurar e demarcar suas terras. Queria demais dar casa e conforto à sua
pequena, mas sabia que não podia.
Jamais
afrontaria sua família mantendo casa de rapariga. Frequentar cabaré era uma
coisa, e manter quenga em endereço próprio era muito diferente. Se seus filhos
doutores soubessem não ia dar certo de jeito nenhum. Também porque a balofa da
esposa continuava viva e espalhando aos cantos quatro cantos que jamais havia
sido traída pelo seu coronel.
Morreu nos
braços da amante, numa manhã de sábado. Esforçou-se demais para mostrar
presença carnal e o velho e combalido coração não suportou. Um grito terrível
saiu do quarto, invadiu o cabaré e tomou as ruas. Morte amorosa, nos braços da
amante, mas ainda assim um maluquinho que vivia nos arredores saiu correndo para
alardear a existência de terrível tiroteio, estando já três mortos contados.
A cidade em
peso, entre morais e imorais, safados e fingidamente honestos, se aglomerou
defronte ao cabaré para saber das causas e consequências da tragédia. Queriam
entrar a qualquer custo, invadir mesmo, pois a essa altura os mortos já
passavam de dez, segundo as fofocas que rolavam soltas. Só não entraram porque
o senhor delegado chegou acompanhado de dois policiais e exigiu ordem absoluta.
Minutos depois
saiu até a porta para relatar o acontecido. E disse em voz alta, quase aos
gritos, que tudo estava bem lá dentro, que não havia acontecido qualquer
tiroteio, apenas um fato deveras lamentável: o Coronel Querêncio Medrado havia
morrido nos braços de sua amante rapariga. E o corpo ainda estava estirado em
cima da cama, nuzinho da silva, com todas as banhas e pelancas que tinha
direito.
Gritos de
espantos foram ouvidos no mesmo instante. Ninguém queria acreditar que o
latifundiário, o homem mais rico e poderoso da região, tivesse morrido e muito
menos naquelas condições relatadas, na cama de uma amante. E se foi assim,
logicamente estava fazendo safadeza. E agora? Chega! Chega! Chega! Quem vai ter
coragem de avisar à família?
Mas nem
precisavam muito discutir sobre isso. O maluquinho se encarregou de sair na
maior correria do mundo e chegar sorridente junto à balofa esposa e calmamente
dizer que o coronel havia morrido lá no cabaré e em cima de uma puta. A velha
senhora só teve mesmo tempo de botar a mão no peito, arroxear e cair pra trás.
Caiu mortinha, imensa, esquisita, toda torta. Antes que os empregados
acorressem aos gritos o maluquinho já trazia, sempre correndo, o noticiário de
volta.
Quando contou
à turba ainda reunida diante do cabaré, logo deliberaram invadir aquele antro
maldito para tocar fogo naquela que havia sido a responsável pela destruição
dos cabeças da família mais tradicional do lugar. Imediatamente ela, a
ex-francesinha, foi sentenciada e responsabilizada criminalmente pela morte
tanto do Coronel Querêncio como de sua esposa Ninoca Medrado, ou Mãe Ninoca,
como costumavam agraciá-la.
Assim que
partiram furiosos em direção à porta, o ordenança do morto apareceu ladeado com
três jagunços e, de armas em punho, foi logo gritando para avisar que quem se
metesse a besta em querer levantar a mão pra mocinha ia tomar chumbo grosso nas
fuças. E disse mais: “Em vida, o Coronel mandou proteger a mocinha, e vai
continuar assim depois do Sinhôzinho morto”. E tirou uma folha de papel do
bolso.
Recuados, mas
avexados para saber do que se tratava, quase dão um piripaqui conjunto quando o
valentão revelou o que ali se continha: “Aqui é o documento deixado pelo
Coronel passando a propriedade desse casarão para a mocinha, sua boa e confiada
amante. E se foi o desejo do Sinhôzinho, assim será cumprido. A ela será
entregue essa escritura e de agora em diante será tida e havida como única dona
desse lugar. E quem tiver achando ruim que venha reclamar comigo”.
Isso se passou
há muitos anos. A partir daquele momento a mocinha passou a ser dona do cabaré
mais famoso da região. Se dizendo viúva, chorando sempre ao falar das virtudes
de seu benfeitor, jamais aceitou dinheiro ou presentes de outros coronéis,
políticos, ricaços. Fechou o balaio de vez, como sempre dizia. Sua vida passou
a ser apenas a de gerenciadora do ambiente, numa rudimentar cafetinagem que nem
sabia bem o que era.
O Ninho das
Delícias foi, por muito tempo, a fina flor da raparigagem. Mas isso quando o
dinheiro era fácil para os seus frequentadores. E a partir do instante que o
cacau começou a perder importância comercial, logo os fregueses começaram
também a escassear. Já não havia belas mulheres, prostitutas novinhas vindas do
recôncavo para a função. O que restou foi um resto de feira para consumo
próprio. Quengas batidas, gordas, cheias de celulite, saudosamente embriagadas.
E o Ninho famoso passou a ser chamado de Casa da Luz Vermelha, nome, aliás, de
qualquer cabaré de quinta categoria.
E era essa
Casa da Luz Vermelha, esse cabaré de qualquer bêbado, que novamente causava
tanta revolta nas beatas, nas solteironas, nas falsas moralistas e até no
dissimulado vigário do lugar. E a data da invasão do ambiente para purificá-lo
com água benta e afastar as impurezas ali existentes já estava até marcada. A
Cruzada Pela Moralidade e Contra a Raparigagem sairia da frente da igreja na
noite da quinta-feira seguinte.
No dia
marcado, na hora combinada, o grupo saiu empunhando cruzes, rosários, terços,
Bíblias, frascos e mais frascos de água benta. O vigário, inventando uma
repentina enxaqueca, se eximiu de acompanhá-las. Ora, já tinha marcado encontro
na sacristia naquele mesmo horário, com a honestíssima mulher do padeiro, beata
que avisou com antecedência da impossibilidade de acompanhar aquela cruzada.
Meia hora
depois e o grupo já estava defronte ao velho casarão. E tudo parecia normal lá
dentro, com poucas luzes acesas, música na vitrola, cheiro de fumaça e de
bebida levantando pelo ar. Ao grito de uma, empunhando uma cruz, as outras
seguiram em marcha. Empurraram a porta e pararam subitamente, espantadas.

Ali dentro
apenas uma velha mulher, a própria dona do cabaré, sentada solitariamente ao
redor de uma mesa, chorando, tendo um copo de bebida à sua frente. Apenas olhou
para as beatas invasoras e, num esforço terrível para sorrir, acenou para que
entrassem mais. Tão espantadas que estavam com a situação encontrada, se viram
caminhando adiante, sentando ao redor da velha mulher.
E naquela
noite ouviram uma história de amor e de saudade como jamais escutaram. E
retornaram com as verdades da vida no coração. Tristes, silenciosas, chorosas.
Mas também contentes, tomadas por uma fé diferente.
Poeta e
cronista
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