Por: Rangel Alves da Costa(*)
NUMA
CASINHA DE SAPÉ
Casinha de
sapé: choupana no meio do mato, nas distâncias do mundo matuto, toda torta, de
paredes baixas e encurvadas, levantada na ripa e no barro, segura no cipó de
gameleira, no fio de caroá, coberta de capim-jaraguá ressequido.
Sem telhado na
cobertura, sem a telha de barro que impedisse o pingo de chuva de qualquer dia
ou a formação de buracos de caber tanta lua e tanto sol, já com a casinha em pé
muito se esperou pelo sapé. Só mesmo muito esforço para juntar capim sapé do
sertão.
É difícil
tarefa encontrar o capim-jaraguá que tenha esteio suficiente para fazer
cobertura. Tudo dificultoso, trabalhoso demais, além de que, por ali, as
paisagens acinzentadas são como as terras estéreis onde nasce o sapé, como
afirmou Coelho Neto, em seu Inverno em Flor.
Mas, uma vez
colocada a cobertura, o caboclo sertanejo tem a sombra como leito, uma
imaginária proteção contra qualquer intempérie. Quando o telhado é no barro, a
chuvarada entra no barraco pela pingueira, através da telha quebrada ou
desconjuntada, mas quando é no sapé dificilmente se forma brecha onde caia
pingo.

Lá dentro, ou
quase tudo num só lugar, somente o olhar e o desejo do casal para criar
dependências, fazer as separações. Por isso mesmo que os dois avistavam uma
saleta, um quarto e uma cozinha. E, num extremo imaginativo, chegavam a
enxergar portas e cortinas.
Mas ali também
a realidade. A presença da mesa tosca de madeira velha, dois banquinhos na
mesma situação, uma rede de armar do lado de fora, debaixo do umbuzeiro
adiante. E também dois potes, duas moringas, panela de barro e frigideira para
os ovos de galinha de capoeira. Eram três. Depois que o padre passou em visita
só restaram duas.
No calor
insuportável do dia inteiro, vez que chuvarada era coisa nem de lembrar quando
se deu a última, a refrescância do corpo se dava com água da moringa dormida no
meio do tempo. Como não havia janela, ela era colocada do lado de fora em cima
dum tronco para ser acariciada pela brisa da madrugada.
A cobertura de
capim sapé estremecia toda quando o vento começava a soprar mais forte. Preso a
cipós de gameleira e caroá, apenas uma ou outra tira seca se desprendia e fazia
viagem pelo ar. Mas continuava firme, forte, protegia do sol, da poeira, do que
caísse lá de cima.
Mas a vontade
mesmo era que chovesse tão forte que as águas rompessem as arrumações e
chuviscasse por dentro. Tinha nada não. Era o prazer da chuvarada, a certeza
que a molhação estava de volta. Mas não havia jeito. Dia após dia e nenhuma
nuvem gorda no horizonte, nenhuma formação de trovoada.
Um dia, alguma
coisa que não foi pingo de chuva nem raio de sol, começou a cair lá de cima, da
cobertura de sapé. Cair não, aparecer. E surgia sem ter nem por onde. Não havia
brecha, abertura, nenhum ponto onde sequer passarinho pudesse entrar. Mas a
verdade é que misteriosamente começou a aparecer coisa vinda lá de cima.
Primeiro uma
borboleta, depois outra e mais outra. Porém, o que a senhora da casinha mais
estranhou foi a cor das voejantes, que ao invés de coloridas como as demais que
tinham abrigo nas redondezas, surgiam na cor de pau, num cinza amadeirado,
parecendo galho seco. E outras foram descendo, surgindo não se sabe de qual
brecha e tomando quase todo o barraco.

Quando a
esposa se apossou dum pano para espantá-las, o marido gritou que pelo amor de
Deus não fizesse isso, que deixasse tudo como estava, pois tinha ouvido dos
mais velhos que borboleta daquela cor trazia no voo chuva de trovoada. E se
encantava por a casinha ter sido escolhida para receber aquele sinal divino.
Trovoada era o que mais precisavam por ali.
E não demorou
meia hora para os trovões começarem a roncar distantes. O céu escureceu num
repente, os relâmpagos tracejavam pelo ar, as nuvens negras já tomavam conta de
tudo. E os primeiros pingos, grossos, barulhentos. Mas também a ventania. E
esta desenfreada, balançando tudo que encontrava no seu caminho.
A ventania não
se fez de rogada ao encontrar aquela frágil cobertura de sapé. Num sopro só, em
apenas um sopro, e levantou todo o capim sapé pelo ar, fazendo com que a
casinha ficasse sem a proteção de riba. Valei-me Deus, gritou a mulher;
Valei-me Nossa Senhora das Borboletas, gritou o homem.
E num instante
aquelas borboletas amadeiradas, que agora já eram incontáveis, começaram a
subir e tomar as ripas, os cipós, e a se juntar umas nas outras, de modo que
não demorou muito e o teto parecia feito de madeira resistente. E dentro da
casinha não caía um pingo de chuva sequer.
Dois dias
depois a trovoada foi embora e o teto de madeira continuo do mesmo jeito. Como
galhos petrificados, unidos de tal forma que formavam como que tábuas firmes,
as borboletas se transformaram na cobertura daquela pobre casinha. E para
sempre.
Biografia do autor:
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em
"Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros
contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e
"Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada
sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão -
Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do
Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor:
Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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