sexta-feira, 23 de novembro de 2012

CAMA DESFORRADA (Crônica)

Por: Rangel Alves da Costa(*)
Rangel Alves da Costa

CAMA DESFORRADA  

Para muitos pode ser preguiça, desleixo, desmazelo ou coisa negativamente parecida, mas vejo muito além disso na presença de uma cama desforrada. Distante de ter o ato como descuido, prefiro compreendê-lo como uma situação poeticamente angustiante.

Sim, poderiam dizer que o que penso não tem cabimento algum, não se justifica sob qualquer hipótese, vez que quem levanta e deixa o seu próprio leito cheio de panos desgrenhados não passa de um preguiçoso. Mas reafirmo que tudo pode ser visto de outro modo. E direi por quê.

Não no ato de deixar a cama desforrada, mas na motivação de fazer assim é que reside a compreensão de tudo. E não será preguiça ou desleixo se a pessoa apenas levantou para o mundo e não para si mesmo, sequer se reconhece diante de um espelho, não sabe qual será o seu passo seguinte.


Ora, mas é feio demais o travesseiro num canto, a fronha solta, os panos retorcidos, espalhados, tudo na maior esculhambação. Assim poderiam dizer. Ora, mas não é feio levantar apressadamente, correr para fugir da solidão da cama, tentar se libertar de uma noite cheia de pesadelos e tristes recordações.

Creio que primeiro temos que analisar a pessoa, entendê-la um pouco, e não seu repulsivo hábito. E ao analisá-la, adentrando na percepção do seu íntimo para compreendê-la perante as suas motivações, em muitas situações se verá que a pessoa merece muito mais de um apoio moral, pessoal ou espiritual do que propriamente uma repreensão.

Situações existem que refogem aos olhos dos que não conhecem a realidade. Os outros geralmente gostam de criticar sem saber o que se passa com esta ou aquela pessoa, seu estado pessoal e espiritual, sua propensão a estar assim tão desleixada ou não. Ora, tudo não parte apenas do fato de levantar e deixar a cama revirada, mas se houve premeditação em deixá-la assim.

Acaso a conclusão seja no sentido de que a pessoa é reincidente em tal atitude, em simplesmente levantar e deixar tudo bagunçado porque tanto faz com o tanto fez, então a recriminação será bem merecida. Mas se não for essa a conclusão, logo se verá que algo de errado está acontecendo com aquela pessoa, que uma motivação qualquer a impede de ter o zelo costumeiro.

Não é fácil dormir na solidão quando o fez acompanhada por longos anos; passar noite a fio revirando de lado a outro, molhando de lágrimas o travesseiro, numa aflição angustiada, numa saudade dolorosa demais, num estado de se ver sem saída. Aquele espaço agora vazio do outro é puxado e repuxado, tudo é feito na ilusão da presença. Em vão...

Não é fácil rememorar todas as perdas do mundo deitada numa cama. Os sofrimentos vão se avolumando, as angústias aumentando, e chegam o desespero e a insônia, chega a vontade de querer sumir, de querer voar, de querer morrer. E não tem jeito. A cama sofre também e as dores vão sendo espalhadas pelos panos retorcidos e sem nenhuma valia.


Não é fácil deitar e dormir depois que perde o emprego, que briga com a namorada, as contas a pagar se avolumam, os compromissos urgentes logo estarão batendo à porta. Um familiar ou pessoa querida está muito doente, alguém que já se foi não lhe sai do pensamento, precisa fazer a feira, precisa comprar um sapatinho para o filho. Ainda naquela noite o pequenino mostrou-lhe a sola furada. É doloroso demais...

Não é fácil ter a noite apenas como uma escuridão, um negrume, um labirinto ladeando o passo; não é nada fácil deitar e refletir sobre o ainda não construído, sobre as impossibilidades e as cobranças pessoais. E por mais que a pessoa passe a noite inteirinha andando pelo quarto ou debruçada à janela, ainda assim as roupas de cama irão se retorcer sozinhas.

Elas compreendem o seu dono, sofrem também, e na angústia se dobram e desleixadamente se soltam. E assim que a manhã desponta é com se o barco da salvação surgisse. E o navegante ruma, em fuga, ao seu destino. E que os vestígios da noite continuem como eles próprios desejaram: esquecidos.
  
(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.


Poeta e cronista
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