Por: Rangel Alves da Costa(*)
CAMA
DESFORRADA
Para muitos
pode ser preguiça, desleixo, desmazelo ou coisa negativamente parecida, mas
vejo muito além disso na presença de uma cama desforrada. Distante de ter o ato
como descuido, prefiro compreendê-lo como uma situação poeticamente
angustiante.
Sim, poderiam
dizer que o que penso não tem cabimento algum, não se justifica sob qualquer
hipótese, vez que quem levanta e deixa o seu próprio leito cheio de panos
desgrenhados não passa de um preguiçoso. Mas reafirmo que tudo pode ser visto
de outro modo. E direi por quê.
Não no ato de
deixar a cama desforrada, mas na motivação de fazer assim é que reside a
compreensão de tudo. E não será preguiça ou desleixo se a pessoa apenas
levantou para o mundo e não para si mesmo, sequer se reconhece diante de um
espelho, não sabe qual será o seu passo seguinte.

Ora, mas é
feio demais o travesseiro num canto, a fronha solta, os panos retorcidos,
espalhados, tudo na maior esculhambação. Assim poderiam dizer. Ora, mas não é
feio levantar apressadamente, correr para fugir da solidão da cama, tentar se
libertar de uma noite cheia de pesadelos e tristes recordações.
Creio que
primeiro temos que analisar a pessoa, entendê-la um pouco, e não seu repulsivo
hábito. E ao analisá-la, adentrando na percepção do seu íntimo para compreendê-la
perante as suas motivações, em muitas situações se verá que a pessoa merece
muito mais de um apoio moral, pessoal ou espiritual do que propriamente uma
repreensão.
Situações
existem que refogem aos olhos dos que não conhecem a realidade. Os outros geralmente
gostam de criticar sem saber o que se passa com esta ou aquela pessoa, seu
estado pessoal e espiritual, sua propensão a estar assim tão desleixada ou não.
Ora, tudo não parte apenas do fato de levantar e deixar a cama revirada, mas se
houve premeditação em deixá-la assim.
Acaso a
conclusão seja no sentido de que a pessoa é reincidente em tal atitude, em
simplesmente levantar e deixar tudo bagunçado porque tanto faz com o tanto fez,
então a recriminação será bem merecida. Mas se não for essa a conclusão, logo
se verá que algo de errado está acontecendo com aquela pessoa, que uma
motivação qualquer a impede de ter o zelo costumeiro.
Não é fácil
dormir na solidão quando o fez acompanhada por longos anos; passar noite a fio
revirando de lado a outro, molhando de lágrimas o travesseiro, numa aflição
angustiada, numa saudade dolorosa demais, num estado de se ver sem saída.
Aquele espaço agora vazio do outro é puxado e repuxado, tudo é feito na ilusão
da presença. Em vão...
Não é fácil
rememorar todas as perdas do mundo deitada numa cama. Os sofrimentos vão se
avolumando, as angústias aumentando, e chegam o desespero e a insônia, chega a
vontade de querer sumir, de querer voar, de querer morrer. E não tem jeito. A
cama sofre também e as dores vão sendo espalhadas pelos panos retorcidos e sem
nenhuma valia.
Não é fácil
deitar e dormir depois que perde o emprego, que briga com a namorada, as contas
a pagar se avolumam, os compromissos urgentes logo estarão batendo à porta. Um
familiar ou pessoa querida está muito doente, alguém que já se foi não lhe sai
do pensamento, precisa fazer a feira, precisa comprar um sapatinho para o
filho. Ainda naquela noite o pequenino mostrou-lhe a sola furada. É doloroso
demais...
Não é fácil
ter a noite apenas como uma escuridão, um negrume, um labirinto ladeando o
passo; não é nada fácil deitar e refletir sobre o ainda não construído, sobre
as impossibilidades e as cobranças pessoais. E por mais que a pessoa passe a
noite inteirinha andando pelo quarto ou debruçada à janela, ainda assim as
roupas de cama irão se retorcer sozinhas.
Elas
compreendem o seu dono, sofrem também, e na angústia se dobram e
desleixadamente se soltam. E assim que a manhã desponta é com se o barco da
salvação surgisse. E o navegante ruma, em fuga, ao seu destino. E que os
vestígios da noite continuem como eles próprios desejaram: esquecidos.
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em
"Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros
contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e
"Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada
sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão -
Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do
Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor:
Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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