Por: Rangel Alves da Costa(*)
BOCA
DA NOITE
Vou começar a
falar da boca da noite através de outras bocas. Eis que a boca é a porta de
tudo, é por onde se segue adiante, é onde começa outra vida ou realidade. Na
boca do ventre, na boca da mata, na boca do rio, na boca da morte. E tantas
bocas entreabertas esperando o momento chegar.
A boca está no
poema: “Calei a boca e tomei o corpo, e como não houve mais qualquer resposta,
me apossei de tudo. Do grito, do céu da boca, da boca cheia de minha boca vazia
de tanto voar em beijos...”. E também no epitáfio: “Oh, lábios que agora
emudecem a tristeza de não ter dito adeus!”.
No meio da
noite a criança abre a boca chorosa e ecoa toda sua vontade de aporrinhar o
silêncio. Ela, apaixonada, mirando o luar imenso que surge, começa soluçando
para em seguida querer gritar. E mais adiante, e por todo lugar, as bocas
trêmulas conversam com suas saudades, os tempos idos, as boas e dolorosas
recordações.

E mais tarde,
quando a solidão chega agonizante, a noite se transforma num labirinto cheio de
bocas enormes, desdentadas, horripilantes, querendo sugar a quem sofre por
merecer. Mas eis que chega um lábio, que chega um carinho suave fechando a boca
medonha da noite e selando num beijo a felicidade do reencontro.
Dizem que o
peixe morre pela boca; o guloso também. A boca bebe a água da vidraça molhada e
poeticamente deixa estampado o lábio sedento. E as tantas bocas esquecidas
quando as palavras raivosas ou apressadas saem pelos ouvidos e as narinas. Cale
a boca já morreu, quem manda na sua boca sou eu. Por isso vou navegá-la. Mas se
a boca der a permissão, a licença.
Mas de todas
as bocas, não nego, sempre preferi a boca da noite. Desde o amanhecer ao
entardecer que vou me preparando para a chegada do momento mágico, misterioso,
cativante, delicioso e também assustador. Porque a boca tem face, e também a
outra; é verso e reverso. E nela há uma cortina, um palhaço e uma lágrima.
Tão bela e
necessária é a boca da noite que a sua chegada exige um rito todo especial.
Como ritual de passagem, não é qualquer um que poderá recebê-la sem que a alma
e o espírito, e tudo o mais que envolva o ser, estejam devidamente preparados.
A noite doa, agracia, mas exige muito de quem irá recebê-la. Sob pena de sumir
na sua boca.
Quando a tarde
toma em sua mão o pincel de cores avermelhadas, e logo mais, parecendo
angustiada, vai sombreando toda a tela, toda a paisagem, então logo pressinto
que a noite chegará. E o horizonte vai se abrindo para o negrume descer, tudo
vai sombreando ainda mais, e toco no lábio do tempo para sentir a boca. A boca da
noite.
Como ainda é
apenas boca quase fechada, apenas entreaberta, sem que a noite tenha chegado
completamente, então passo a imaginar o que quero encontrar mais tarde.
Contudo, há uma imensidão de tempo entre o sombreado da noite e o seu abraço
inteiro. E o que acontecerá mais tarde certamente estará na dependência do que
o corpo, a mente e o espírito sintam antes de tudo acontecer. Na boca da noite.

Por isso que a
boca da noite é bela e feia, é alegre e triste, é amiga e hostil. Vem trazendo
uma saudade boa, uma recordação cativante, uma vontade danada de estar ao lado
de alguém importante ao coração, um desejo profundo de um diálogo amoroso, um
abraço apertado, um deitar no colo da pessoa amada. Mas também o medo terrível
da solidão, da certeza que novamente sofrerá olhando a lua, mirando as
estrelas, viajando sem sair do lugar.
Boca de uma
noite faminta, de lábio vermelho, de lábio carnudo, de lábio sem cor, de lábio
apenas lábio. E sonha em se abrir para receber um beijo, se sentir molhada,
amada, apaixonada. Ou talvez para a palavra, para dizer que espera da noite o
que o ser consciente espera da existência: ter o que merecer.
E por isso
mesmo espera a felicidade. Ainda que a boca trêmula e o coração apertado
pressintam que ainda não será naquela noite. Nem com outra boca.
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em
"Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros
contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e
"Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada
sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão -
Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do
Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor:
Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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você gosta de ler histórias sobre "Cangaço" clique no link abaixo:
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