sexta-feira, 16 de novembro de 2012

APÓS A MEIA-NOITE, NO CEMITÉRIO (Crônica)

Por: Rangel Alves da Costa(*)
Rangel Alves da Costa

APÓS A MEIA-NOITE, NO CEMITÉRIO  

Um pio modorrento, horrível, lúgubre da coruja. Os olhos vermelhos e faiscantes do gavião de repente surgidos naquela hora da noite. Coisa muito estranha de acontecer assim. E uma ventania que parecia gemer ao balançar as folhagens. Sussurros agonizantes, sons medonhos de pegadas, uma luz que apagava e acendia.

Quem passasse pela estrada ao longo do cemitério, que ficava mais abaixo, não avistava nada diferente. A mesma escuridão de todas as noites, o mesmo silêncio assustador, a lembrança de que logo adiante os mortos jaziam enterrados. Talvez uma recordação repentina. Apenas isso. Mas se seguisse cortando as veredas que levavam às covas sentiria algo muito diferente naquela hora da noite.


Já era meia-noite e de uma noite fechada, de negrume retinto, sem se conseguir enxergar quase nada adiante. Mas alguém, cujo animal de montaria empacou bem na entrada do caminho piçarrento que levava ao cemitério, e se viu como que forçado a olhar para aquele lado, não acreditou que pudesse estar acontecendo aquilo que os seus olhos enxergaram.

Em meio à escuridão avistou luzinhas mais ao longe, lá pelas bandas onde estavam enterrados os mortos. Pensou serem vaga-lumes zanzando de lado a outro, faiscando por cima das tumbas e ao redor. Mas olhou mais detidamente e mesmo estando longe concluiu que vaga-lumes não tinham chamas quase estancadas, se movimentando apenas lentamente de canto a outro. Ademais, as luzes do inseto seriam imperceptíveis de onde estava.

Até hoje não se sabe onde a pessoa arranjou coragem para resolver descer mais a estradinha e seguir rumo ao local defuntesco. Mas a verdade é que, talvez nem se dando mesmo conta do que fazia e das consequências do seu ato, se aproximava cada vez mais do muro baixinho que circundava o campo-santo.

Distando uns vinte metros da entrada parou, encostou-se a um tronco de árvore como estivesse se escondendo de alguma coisa, e ficou cautelosamente olhando na direção das pequenas chamas no meio da noite. Depois de uns cinco minutos, após passar a mão muitas vezes pelos olhos, percebeu que as chamas caminhavam. Sempre chamuscando, paravam e seguiam em frente, mas lentamente.

E as chamas eram de velas acesas. Por consequência, mesmo sem conseguir enxergar quem as conduzia, teve certeza que pessoas caminhavam vagarosamente, de lado a outro, carregando velas acesas. Mas quem estaria ali àquela hora e fazendo o que, se perguntou intrigado. Abaixou-se, e quase de cócoras foi sorrateiramente até o limiar da mureta. Assim que chegou, levantou cuidadosamente a cabeça e viu quem segurava as velas. Coisa do outro mundo.

Coisa do outro mundo, os mortos levantados das covas, só podia ser. Foi o que pensou apressadamente. Não eram pessoas vivas, normais, porque não apresentavam corpos completos, não estavam vestidas com roupas comuns. Mas apenas esqueletos tendo molambos, restos de panos por cima, mortalhas esfarrapadas. Contudo, o mais estranho é que paravam umas diante das outras e se portavam como se estivessem conversando, trocando cumprimentos ou coisa parecida.

De repente, com o máximo cuidado para não ser percebida, a pessoa avistou algo ainda mais intrigante. Duas almas passaram abraçadas e pararam um instante para se juntarem de tal forma que outra coisa não parecia senão um fervoroso e longo beijo. E em seguida deitaram por cima de uma lápide para o ato sexual. E os gemidos foram além dos muros.


As outras almas passavam adiante sem nem olhar naquela direção. Enquanto umas se amavam outras conversavam ou simplesmente zanzavam levando suas velas acesas. Duas conversavam sentadas em cima de um monte de areia, uma começou a cantar com voz rouquenha e incompreensível, umas tantas começaram a dançar. E uma veio em direção ao local onde a pessoa estava, naquela exata direção, como se já soubesse o que encontraria ali.

Assustada, a pessoa quis correr, porém não encontrou nem um pingo de força nas pernas. Quis gritar, mas, por mais esforço que fizesse, não saiu nada de sua boca. Apenas conseguiu levantar e erguer na mão uma pequena cruz que sempre levava pendurada no pescoço. Mas a alma já estava diante de si.

Chegou trazendo sua vela na mão abaixada. Assim que chegou diante da pessoa foi levantando a chama até iluminar completamente o local onde seria o seu próprio rosto. E era realmente um rosto, já carcomido, mas ainda reconhecível. E era o rosto da pessoa que estava ali. E a alma disse apenas: Estava te esperando. Toma, entre nesse cadáver que ele é seu!
A pessoa nem ouviu todas as palavras. De susto, repentinamente desabou, caiu já morta.

Biografia do autor:

(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.

  
Poeta e cronista
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