
A vida de Luiz
Joaquim dos Santos Marrocos mostra o cotidiano no Rio de Janeiro do início do
século XIX e como uma esposa e um bom cargo público levaram um português a
defender a independência da colônia que desprezava.
Em junho de
1811, lá pelo dia 15, entrou no porto do Rio de Janeiro uma fragata portuguesa
de nome Princesa Carlota. A fragata, que saíra de Lisboa em meados de março e
passara por maus momentos durante a viagem – ventos contrários, calmarias
prolongadas e tempestades –, estava caindo aos pedaços, e tanto a tripulação
quanto os passageiros vinham esfomeados ou doentes.
Em meio aos
desafortunados viajantes, encontrava-se um homem de 30 anos, chamado Luiz
Joaquim dos Santos Marrocos. O português, como muitos de sua geração, vinha de
Lisboa com um emprego garantido na burocracia estatal, o de bibliotecário da
Real Biblioteca, e, também como muitos de seus contemporâneos, vinha com o
declarado e firme propósito de melhorar de condição e retornar para junto da
sua amada família na terrinha. A vida, porém, pregou uma peça neste rabugento
bibliotecário. Uma vez estabelecido no Rio de Janeiro, a terra pareceu-lhe cada
dia menos hostil e ele acabou por deixar-se ficar na cidade, contrariando o que
escrevera ao pai poucos meses depois do seu desembarque: “Creia (...), se Sua
Alteza Real me enchesse de benefícios tais que me visse elevado a um grau
sublime de representação e abundância, nada faria desvanecer da minha idéia o
constrangimento em que vivo e o sumo desejo de me retirar de tão mau país. Deus
permita não terminar meus dias debaixo deste horizonte (...)”.
Esse imigrante
português era filho de Francisco José dos Santos Marrocos, um professor de
filosofia que também exercia, na Biblioteca Real da Ajuda, em Lisboa, o cargo
de bibliotecário. Pouco se sabe sobre a sua vida antes de desembarcar no
Brasil. Nascido na capital portuguesa, em 1781, desde 1802 ocupava a função de
ajudante das Reais Bibliotecas. Durante a invasão francesa, havia servido na
Junta de Direção Geral dos provimentos de boca para o exército e, pouco depois,
foi nomeado capitão de uma das companhias das Legiões Nacionais para a defesa
de Lisboa.
Esse
bibliotecário mediamente culto e empenhado, depois de se transferir para o
Brasil, em 1811, progrediu muito e rapidamente. “Eu aqui principiei a adotar o
sistema de Maria vai com as outras”, escreveu Marrocos em 1812. O sistema
parece ter dado excelentes resultados, pois, ao morrer em 1838, com apenas 47
anos, ele exercia a importante função de Oficial-maior da Secretaria de Estado
dos Negócios do Império, um cargo nada desprezível para quem, vinte e poucos
anos antes, desembarcara na cidade como simples funcionário da Real Biblioteca.
Além de
tamanho progresso profissional, o país que a princípio lhe parecera tão
desagradável proporcionou-lhe pelo menos uma outra grata surpresa: uma esposa.
Em 22 de setembro de 1814, Marrocos, farto de estar só e doente em terra
estranha, como comentou com o pai, casou-se com dona Ana Maria de Santiago
Sousa, uma carioca de 22 anos de idade, filha de pai português e mãe
brasileira, gente muito limpa, honesta e abastada, como explicou aos seus
familiares.
Apesar das suas
explicações, a união parece ter sido muitíssimo contestada pelos parentes, que
queriam vê-lo casado com uma lisboeta. Já em 1815, reclamava que não lhe
agradavam as expressões irônicas que o pai usava em carta para se referir a sua
esposa e que o tratamento que lhe dispensavam deixava patente a falta de
sinceridade com que era tratado desde suas núpcias.
Apesar de ter
um temperamento azedo, Marrocos não se mostrou insensível a tamanhos benefícios
propiciados pelo Brasil e, com o correr dos anos, mudou um pouco a sua visão do
país. Prova disso são as diferentes reações que teve quando, em duas ocasiões,
se viu diante da possibilidade de trazer os parentes lisboetas para o Rio de
Janeiro. Em 1812, respondendo a uma indagação do pai, que queria, ao que tudo
indica, imigrar com o resto da família, o bibliotecário, depois de explicar os
horrores que passariam na viagem, arrematou com a seguinte advertência:
“Reflita na qualidade da terra; porque há nela sempre uma contínua epidemia de
moléstias, pelos vapores crassos e corruptos do terreno e humores pestilentos
da negraria e escravatura, que aqui chega da costa leste; (...) além disso, a
cidade é de pouca extensão e muito semelhante ao sítio de Alfama ou,
fazendo-lhe muito favor, ao bairro Alto nos seus distritos mais porcos e
imundos. Ora, quem vem de Lisboa, aqui desmaia e esmorece”.
Isso disse
Marrocos em 1811, poucos meses após desembarcar. Mais tarde, em meados de 1819,
depois de ter se casado, se adaptado à terra e, sobretudo, progredido bastante,
é o próprio bibliotecário quem retorna a idéia. Determinado a convencer os seus
familiares a virem para o Brasil, escreve-lhes uma longa carta, enumerando as
vantagens de imigrarem. Antes de exaltar as virtudes da terra, lembra ao pai
que a família levava uma vida miserável em Lisboa e que o patriotismo era um
frívolo pretexto de gente caduca, ainda mais se a pátria em questão era uma
terra ingrata como Portugal. Em seguida, exalta as qualidades da vida que
passara a levar depois que viera para o Brasil, vida cômoda e aprazível: morava
em uma casa grande e bem localizada, tinha diversos escravos para servi-lo,
comia do bom e do melhor, vestia-se com dignidade, enfim, estava numa situação
muito confortável e poderia – garante ao pai – proporcionar o mesmo a ele, à
mãe, à irmã e à tia.
Logo adiante,
na mesma carta, para arrematar o seu insistente convite, Marrocos destaca as
qualidades do lugar onde morava e não esconde o quanto mudara a sua visão do
Rio de Janeiro: “o sítio (...) é magnífico, e talvez o melhor da cidade, não só
por ser lavado de bons ares, mas em uma rua muito larga e asseada, tendo no
princípio um formoso chafariz, e no fim o Passeio Público (...); temos próximas
3 igrejas e 2 capelas, uma praça de hortaliças e o matadouro com açougue, além
de mil outras comodidades (...); sendo de não menos vantagem a proximidade do
mar para limpeza e despejo da casa (...)”.
Tudo isso que
sabemos sobre Marrocos quem nos conta é ele próprio. Ao longo da primeira das
quase três décadas em que viveu no Brasil (1811-1838), o português escreveu à
sua família, sobretudo ao pai, relatando o seu cotidiano. Foram 186 cartas que
chegaram até nós, redigidas entre junho de 1811 e março de 1821. A última,
remetida meses antes de d. João VI deixar o Brasil, dá conta de seu rompimento
com a família, que parece, como referimos, não ter aceitado muito bem o seu
casamento e gradativo abrasileiramento.
Ainda que uma
boa parte dessas quase duas centenas de cartas trate de suas atribuições na
Biblioteca Real, do seu progresso profissional, da falta que sentia de notícias
da família e das mazelas dos políticos e funcionários que cercavam d. João VI –
quase todos pintados como corruptos, ignorantes, levianos e incapazes de pensar
no bem comum –, Marrocos encontrou tempo para tecer comentários ligeiros um
pouco sobre tudo, da saúde dos membros da família real ao enervante espírito
patriótico que tomava conta dos brasileiros.
Luiz também
estava constantemente atento ao estado da saúde pública do Rio de Janeiro. A
cidade, que crescera desmedida e rapidamente, era imunda, rodea da de águas
podres e com um clima que o bibliotecário reputava pavoroso: “Mais pestífero do
que Cacheu, Caconda, Moçambique, e todos os mais da costa de Leste; (...) aqui
anda sempre o são Viático por causa dos enfermos, de dia e de noite; e há pouco
soube que só na igreja da Misericórdia desta cidade se enterraram no ano de
1811 para cima de 300 pessoas naturais de Lisboa!”.
O pânico em
relação às condições de higiene e saúde do Rio de Janeiro não diminuiu com os
anos. Ao contrário, de tempos em tempos, Marrocos reportava ao pai e à irmã que
a cidade estava sendo assolada por uma epidemia e que a sua saúde não ia bem.
Há cartas que são verdadeiros obituários, com nomes e nomes de portugueses
mortos em alguma epidemia. Em 1816, por exemplo, comunica à família que padeceu
com as hemorróidas – neste país são mais ativas que em Portugal –, que perdeu 2
negros para as bexigas e que todos em sua casa sofreram nesta estação de
epidemias que têm grassado por toda a cidade, causando grande mortandade.
Outro tema
igualmente presente nas missivas é a violência urbana. O centro do Rio de
Janeiro e os seus subúrbios, narra o bibliotecário, estavam infestados de
ladrões, que roubavam, sem qualquer constrangimento, logo ao princípio da
noite. Em 1813, Marrocos conta ao pai que tinham sido registrados 22
assassinatos na cidade em apenas cinco dias, muitos deles executados de forma
bárbara. A situação era tal que o chefe de polícia tinha sido não somente
roubado, mas ainda esbofeteado, pois trazia consigo pouco dinheiro.
O
bibliotecário também contou à família sobre as dezenas de comemorações que o
intendente Paulo Fernandes vinha organizando para homenagear a família real e
trazer o povo entretido. Pelo que narra Marrocos, comemorava-se de tudo, de
casamentos e batizados ao restabelecimento de um príncipe ou princesa doente,
sempre com muita pompa e circunstância, com missa e festança que se espalhava
por toda a cidade.
O Rio de
Janeiro pintado por Marrocos, no entanto, não obstante essas comemorações
cívicas e outras de caráter religioso é uma cidade carente de divertimentos, em
que os que tinham um par de patacas promoviam em sua casa partidas noturnas,
por não haverem outros entretenimentos.
Malgrado, no
entanto, essa carência de divertimentos, de vida social, Marrocos comenta que o
Brasil é denominado com razão de terra dos vícios e da perdição e que muitas
moças de Lisboa, quando se mudavam para o Rio de Janeiro, adotavam um mau
procedimento e passavam a levar uma vida viciosa. Muitos cariocas, lamenta o
bibliotecário, olhavam com desconfiança as moças de Lisboa, que já tinham no
Rio de Janeiro a mesma reputação – má reputação – que as brasileiras tinham em
Portugal.
Dizer mal dos
portugueses, a propósito, tornava-se um hábito cada vez mais comum entre os
brasileiros que, de dia para dia, observa Marrocos, estavam mais impertinentes
no seu patriotismo. Em 1815, quando o Brasil foi promovido a Reino Unido de
Portugal e Algarves, tal impertinência, segundo o bibliotecário, tornou-se
excessiva, insuportável.
“Pelas gazetas
que ultimamente remeti a vossa mercê, lhe será constante o brado que aqui se
ouviu pela elevação destes Estados a Reino (...). O senado, que em tudo se quer
distinguir, em tudo dá a conhecer que é Senado do Brasil e por isso fez a
função mais porca, que eu não esperava ver. Em despique à mesquinhez do Senado,
o Corpo do Comércio, todo bazófia, reserva para depois da Páscoa a sua função
alusiva ao mesmo objeto, e em que prometem o maior aparato e grandeza, à
imitação das Festas Reais de Lisboa.”
Esse
lusitanismo ressentido de Marrocos aquiesceu com o passar do tempo, ao ponto de
o imigrante romper com a família, apoiar o processo de Independência e, pelo
que se infere da sua rápida ascensão nos quadros burocráticos do Brasil de d.
Pedro I, abraçar de corpo e alma a nova pátria. O seu mau humor em relação a
certos aspectos da vida carioca, contudo, não diminuiu. Enquanto durou a sua
correspondência com os parentes lisboetas, o português não poupou censuras aos
brasileiros, a quem tinha na conta de uma gente indigníssima, soberba, vaidosa
e libertina. O país, também, nunca chegou a agradar-lhe completamente: as
comidas típicas provocavam-lhe náuseas, os animais e insetos despertavam-lhe um
verdadeiro horror, o alarido das ruas povoadas por negros desgostava-o.
Apesar de tudo
isso, Marrocos foi ficando e nunca mais mencionou retornar para Portugal, país
que também não tinha em alta conta. Ao descer ao túmulo em dezembro de 1838, o
ex-bibliotecário era um homem realizado: tinha família grande, era
Oficial-maior de Secretaria, pertencia à Ordem Terceira dos Mínimos de São
Francisco de Paula e seu enterro tinha sido prestigiado por grande número de
pessoas, entre as quais, certamente, muita gente graúda.
Texto de Jean
Marcel Carvalho França.
Professor do
Departamento de História da Unesp e autor, entre outros livros, de Literatura e
sociedade no Rio de Janeiro oitocentista (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1999)
e Outras visões do Rio de Janeiro colonial (José Olympio, 2000).
Fonte: http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/
Extraído do blog: Saiba História do professor e pesquisador Adinalzir Pereira Lamego
http://saibahistoria.blogspot.com.br/
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