Por: Honório de Medeiros(*)
![[Honório+lindo+026.jpg]](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhZIvf16POBxAthXKHGOpXWRXnC0dDeHyy5235c2jM9jlP7gJehZqvcfggNLuBW7fgILaVpWLTSKKg89CYYPWvd2Y0Q9zzkgi009tn0kDs-tFVUtAjz21TLbP571QqlslPl5vPCNp1eLDE/s220/Hon%C3%B3rio+lindo+026.jpg)
Formavam um
belo casal.
Ambos já acima
dos setenta, beirando os oitenta, cabelos totalmente brancos, andar pausado,
vinham todos os dias, até nos finais de semana, tomar, por volta da hora do
“ângelus”, uma sopa de legumes especialmente preparada para eles.

Quando os vi
pela primeira vez, despontando na esquina da rua onde estávamos, no
restaurante, chamei a atenção: “vejam”. Vinham lentamente, de mãos dadas,
parecendo um casal de namorados a apreciar a companhia um do outro enquanto
flanavam.
Embora ela
aparentasse ser mais idosa, estava em melhor estado de conservação. E notava-se
claramente seu cuidado para com ele. Sua mão que enlaçava era também a que conduzia,
guiando-o e o afastando de possíveis obstáculos, tais como irregularidades no
calçamento ou cadeiras postas no meio do caminho.
Mas não era
só. Depois de sentados, era ela quem puxava conversa e lhe fazia breves relatos
- querendo entretê-lo - aos quais ele pontuava com monossílabos, ou chamava sua
atenção para algo diferente, tal como o olhar cândido e curioso da criança
sentada na mesa próxima a sua.
Mesmo após
vezes seguidas observando, ao longo dos dias, quase nunca os vi sorrir. Eram
muito sérios e somente em uma ou outra oportunidade pude surpreender um carinho
eventual de um para com o outro. Não que isso demonstrasse distanciamento, ao
contrário. Havia, entre eles, uma transcendência – era perceptível – quanto ao
trivial de gestos desnecessários, típica de um relacionamento antigo, onde o
entendimento era perfeito e o silêncio comum pleno de compreensão.
Eu e os outros
conversamos vezes sem conta sob o casal, com quem os atendia. Tinham nascido em
outro lugar, dizia o garçom, uma cidade grande, eram aposentados e tinham
optado por não terem filhos. Agora, no final da vida, desejando mais
tranquilidade, vieram para uma cidade menor onde não possuíam parentes próximos
nem conhecidos.
“Quem cuida
deles?”, perguntei. “Ninguém; há uma moça que faz a limpeza do apartamento e do
restante eles mesmos cuidam”. “Quando querem sair”, prosseguiu, “já têm um
motorista de táxi de confiança que os leva para onde desejam ir”. “Saem?”,
continuei. “Vão à missa, aos médicos...”
Após algum
tempo trocávamos cumprimentos, mas jamais passou disso. Havia certa reserva em
cada um deles que desestimulava a aproximação para a conversa coloquial. Talvez
já não tivessem interesse em construir novas relações e absolutamente não se
sentissem solitários; quem sabe gostassem da solidão e do tipo de paz que ela
proporciona? Se não fosse assim, por qual outro motivo teriam saído de sua
cidade e vindo para cá, um lugar desconhecido, pensava eu...
No fim, tudo
acabou como esperado, como sempre acaba tudo. Ele teve um infarto fulminante e
ela ficou só. No início, pelos relatos, pensou em continuar no apartamento que
dividiam e tocar a vida. Mas um dia, quando cheguei e percebi sua ausência na
hora de costume, fui informado que decidira partir e ir morar em um local
especializado em idosos.
Antes,
aparecera para se despedir. Deixara, até mesmo, uma pequena lembrança, um
“souvenir”, para cada um dos que trabalhavam no restaurante. Agradecera muito,
delicadamente, toda a atenção recebida. Não tocara no assunto de sua viuvez,
nem dissera para onde iria. Depois, apertara a mão dos proprietários, desejara
felicidade, e se fora, com seu passinho miúdo, o vestido elegante, de talhe
antigo, deixando, pela última vez, o cálido registro do esvoaçar dos seus finos
cabelos brancos e um leve vestígio de “Fleur de Rocaille” no ar.
Em mim, como
vieram, foram-se. Deixaram por muito tempo uma lembrança vaga, de um matiz
suave, crepuscular, como uma fotografia em sépia, algo a ficar em um nicho
adormecido do museu de lembranças.
Resolvi
resistir proustianamente. Na medida dos meus limites, eis esse registro,
enquanto homenagem à elegância, discrição, e à arte de cultivar a reserva
pessoal.
(*) Mestre em
Direito; Professor de Filosofia do Direito da Universidade Potiguar (Unp);
Assessor Jurídico do Estado do Rio Grande do Norte; Advogado (Direito Público);
Ensaísta.
http://honoriodemedeiros.blogspot.com
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