Por Rangel Alves
da Costa*
Curralinho,
povoado localizado no sertão sergipano de Poço Redondo, às margens do São
Francisco, possui uma denominação apropriada ao seu primeiro contexto histórico
enquanto porteira para os sertões. Com efeito, o nome Curralinho vem de curral
pequeno. É diminutivo da expressão portuguesa “curral”. E foram os currais
pequenos – ou curralinhos – que permitiram a povoação não só daquelas beiradas
de rio como da região interior sertaneja.
Curralinho foi
a porta de entrada para o que se tem hoje como município de Poço Redondo.
Esperava-se que Bonsucesso, povoação igualmente ribeirinha, por ter suas
margens avistadas um pouco antes que Curralinho, ali recebesse as embarcações
que começavam a trilhar pelos caminhos das águas de um mundo novo e
desconhecido. Mas talvez porque as barrancas de Bonsucesso possuíssem maior
declive que as de Curralinho, suas margens tivessem sido escolhidas como porto
de fixação e passagem.
Antes que as
revoltas coloniais impusessem uma debandada do litoral através das águas do
Velho Chico, os sertões eram praticamente desconhecidos. Era uma verdadeira
vastidão de terras da natureza, tomadas de plantas, de bichos, de mataria
fechada. Os primitivos habitantes já haviam desaparecido nos confins de suas
cavernas. Não havia estrada, não havia vereda, não havia sequer uma clareira
aberta. Somente através das águas do São Francisco se poderia alcançar as
entranhas desse mundo distante e tão hostil. E mesmo os que aportaram do
litoral por necessidade ou fuga desconheciam o que poderiam encontrar adiante.
No leito das
águas grandes, de lado a lado num piscoso caudal, as embarcações rumavam
carregando vidas, sonhos, esperanças. Ora, aqueles desbravadores traziam
consigo quase tudo que lhes restava do rebanho: boi, vaca, cavalo, jumento,
cabrito. E quanto mais adentravam pelos sertões mais se enchiam de espanto pelo
desconhecido além das margens do rio: apenas a mata virgem, fechada, talvez
perigosa demais. Mas tinham de escolher lugares mais apropriados para
desembarcar seus rebanhos. Alguns resolvendo ficar numa margem mais aberta,
outros preferindo as proximidades da mataria. E assim as ribeiras do rio foram
sendo povoadas pelos criadores e seus rebanhos. Estava cumprido o destino do
Rio dos Currais, como o São Francisco também é chamado.
E Curralinho
fez parte dessas escolhas. Ao despontarem na curva do rio e avistar um
verdadeiro planalto antes que as serras escondessem os mistérios de mais
adiante, aqueles viajantes não duvidaram que ali fosse o local ideal para
descerem os bichos e providenciar cercados. Tais cercados, de madeira cortada
nos arredores, foram os primitivos currais sertanejos. Os bichos precisavam de
currais para não debandar e então pequenos cercados, verdadeiros curralinhos,
foram sendo espalhados de canto a outro.
Assim,
Curralinho nasceu de uma escolha feita por viajantes das águas. Suas margens -
ali mesmo onde hoje se ergue a povoação - serviram como assentamentos aos
forasteiros até que estes enveredassem pelas entranhas da terra. E não demorou
muito para entrassem mataria adentro, passando o facão e o machado no que
encontrassem pela frente, até fazer surgir os primeiros pastos e as primeiras
fazendas. Mas em Curralinho permaneceram aqueles que sentiam melhor diante
daquele espetáculo maravilhoso do rio. Daí que todas as raízes familiares da
povoação remontam a estes primeiros desbravadores.
Relembrar
Curralinho antiga é reencontrar uma visão ao mesmo tempo bucólica, pujante e
humilde. Um lugar com duas situações de moradias distintas. Uma rua da frente,
defronte ao rio, com suas casas e casarios imponentes, curvas arquitetônicas em
cada detalhe, moradia dos mais abastados e melhorados de vida, ainda que
riqueza mesmo não houvesse mais. E outra logo atrás, na entrada de quem chega
da sede municipal, com casas mais simples e famílias mais empobrecidas, ainda
que um ou outro casarão entremeasse em tal paisagem. As casas defronte ao rio
com calçadas que chegavam aos três metros ou mais de altura, um verdadeiro
perigo. Mas assim tinha de ser por causa das constantes cheias, cujas águas
impiedosamente avançavam e acabavam inundando até as moradias da outra parte da
povoação.
As cheias eram
tão esperadas e tão constantes que os quintais também serviam para plantação de
arroz. Mas quando as águas baixavam e o leito do rio voltava à normalidade,
então Curralinho retomava um esplendoroso cotidiano. Velhos pescadores
remendando suas redes debaixo de um imenso pé de tamarineiro localizado próximo
à beirada das águas. Valter logo adiante ajeitando a sua bela canoa. Quase
defronte ficava o salão de seu irmão Ciano, local ideal para a rapaziada jogar
sinuca e bilhar. Da porta do salão avistavam-se muitas embarcações nas lides
pesqueiras ou adormecidas às margens.
Também nas
calçadas altas ficavam as vendas de Chico Bilato, Seu Neguinho e outros
beiradeiros. Uma cerveja pedida diretamente da prateleira ou da geladeira a
gás. Uma talagada de vinho jurubeba, uma tubaína com bolachão, tudo chegado de
Pão de Açúcar ou Propriá. E ao entardecer de calçadas e proseados, homens e
mulheres colocavam suas cadeiras nas calçadas e deixavam seus olhares se
perderem naquele rio/mar adiante. A mais bela das visões de um povo com sua
grandeza histórica. Os vapores, as canoas de toldas, as carrancas na proa das
embarcações, e de repente aportando e pessoas descendo ou subindo, sacos de
alimentos ou de carvão, todo um comércio fazendo ali seu percurso.
Enquanto o sol
do entardecer dava os últimos afagos nas águas, o lendário João de Virgílio já
havia feito umas três viagens, e a pé e descalço, entre Curralinho e a sede
municipal. Na cabeça levava e trazia caixa, saco e até caixão de defunto. Mesmo
no meio da noite ele pegava a estrada para ir à cidade providenciar o caixão
barato. E todo santo dia fazia o mesmo percurso muitas vezes. Saía de
Curralinho, subia e descia ladeira e seguia em frente. Num desses retornos teve
um mal súbito e tombou solitário na estrada.
Quem chega
hoje a Curralinho nem imagina sua riqueza histórica, sequer conhece a passagem
de Antônio Conselheiro pela região, também não tem conhecimento da profunda
religiosidade de seu povo. Em 1874 o beato missionário incentivou a construção
de uma capelinha em devoção a Nossa Senhora da Conceição, que ainda é avistada
no alto. Defronte ao rio há outra igreja, construída em louvor a Santo Antônio
e que possui um significado histórico indescritível. Na fachada principal, uma
porta em madeira arrematada por um arco abatido. O belo frontão é encimado por
uma pequena cruz. Noutros tempos, no altar havia imagens do padroeiro Santo
Antônio, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e do Coração de Jesus. Destaque para
a bela imagem de Nossa Senhora da Conceição, em madeira, que talvez já tenha
sido retirada de lá.
Curralinho
continua com sua história, mas apenas isso. Grande parte das principais
famílias se mudou para a sede municipal. Poucos são os casarios que foram
preservados ou ainda continuam existindo. Na maioria daquelas que eram
suntuosas residências, hoje somente fachadas guardando a primorosa arquitetura
de outros idos. No demais, apenas uma povoação ribeirinha para visitantes. E o
pior aconteceu: enquanto pessoas de Poço Redondo constroem casas de fins de
semana e até mansões, os moradores do lugar se veem cada vez mais empobrecidos.
O lugar foi tomado, invadido, sem qualquer estrutura ou preocupação com a
população. E o medo maior é que Curralinho tome o mesmo destino do Velho Chico
e algum dia passe a existir somente no nome.
Poeta e
cronista
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