segunda-feira, 27 de julho de 2015

PRENDA FRANCISCANA

Por   Joab Aragão
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Para Manoel Messias Sousa, diretor da Faculdade Rainha do Sertão,    Quixadá. Tianguaense dos bons.
                                                                                                                                         Joab Aragão
                
Na noite de 03 de outubro de 1985 coordenávamos, eu e um grupo de amigos, um leilão em benefício da festa de São Francisco, na calçada da igreja matriz de Tianguá.
                
Ocupados os postos, recebíamos as ofertas que, generosamente, eram entregues,em maior quantidade, pelos moradores da zona rural.
                
A grande mesa na calçada tornara-se pequena para acolher os cachos de banana, as cestas de abacate, as garrafas com mel de engenho, as rapaduras, as batidas e outros produtos da terra.
                
Debaixo da mesa abrigavam-se patos, perus, galinhas e até um bode branco, de barbicha alourada.
                
A presença maciça de pessoas simples atestava a popularidade do santo de Assis. O carisma de Francisco, ultrapassado as fronteiras da Itália, propagara-se também pelas plagas da Ibiapaba. Ali, como em todo o Nordeste Brasileiro, o santo e os peregrinos tornam-se iguais no vestir e no próprio sacrifício de existir. Daí a similitude do santo com os seus seguidores.
                
Terminada a novena, a banda de música anunciou, com o primeiro dobrado, que o leilão ia começar. Entretanto, um casal de idosos que há certo tempo estivera de pé, próximo à mesa do leilão, permanecia impassível no mesmo lugar. A mulher, com vestido muito simples e apertado na cintura, com uma saia de muitos panos, amparava o marido. O marido, macróbio de longas orelhas e cabelo na venta, empertigava-se com o apoio da bengala, dentro de um terno azul de mescla, cheirando a goma, novinho em folha. A camisa, destaque maior do figurino, ostentava quatro bolsos bem caprichados e uma carreira de botões de grosso calibre que subia até o gogó.
                
Notando que o leilão iria começar, o casal caminhou em direção à mesa. Tomado o fôlego compatível para a abordagem, a velhinha me indagou se eu era o mestre do leilão. Respondi-lhe não ser o mestre mas o encarregado, juntamente com os companheiros presentes. O que desejava, pois, uma vez que estavam ali há tanto tempo? Literalmente, num linguajar bem popular, falou:
                
- É que meu véio trouve uma prenda pro leilão... e a promessa é pra ele mesmo arrematá... mas ele só tem quinhentos mil réis. Quer que seja a premeira prenda, porque nóis mora longe e precisa ir simbora logo...     
                
Bem. Ali estava uma proposta, de promessa feita ao santo de Assis, vinculada a alguns condicionamentos, passíveis de estudo. Não ficaria bem rejeitar uma prenda, mesmo sujeita às condições impostas. Analisada a proposta, pedi-lhe pressa na apresentação da prenda.
                
Incontinenti, o velhinho levou a mão direita ao bolso inferior da camisa de mescla azul e de lá retirou um ovo de galinha. Isso mesmo. Um ovo de galinha caipira, avaliado em quinhentos cruzeiros, direto para o leilão, em lance único, sem direito a réplicas. Decidir era preciso. E o bom senso aconselhou-me a deferir, na íntegra, a proposta do casal. Sem delongas transmiti ao leiloeiro Manoel Gaioso as condições apresentadas e deferidas. Num piscar de olhos, o martelo foi batido. Rápido, entreguei ao arrematante o produto leiloado.
                
- Pronto. Aqui está o ovo arrematado conforme vocês pediram. Estão satisfeitos?
                
O velho, enquanto recebia o produto arrematado com a mão esquerda, com a direita me repassava a cédula de quinhentos cruzeiros. A resposta veio uníssona:
                
-  Fiquemo sim senhor.
                
E para complementar a resposta, o ancião concluiu:
                
- E fico mais satisfeito ainda dando o ovo de presente para São Francisco. 
                
Recebido o ovo de volta, agora como presente e não mais como prenda, encarei as duas criaturas. Tão simples e tão humildes, retirando-se vagamente, num compasso de apoio mútuo, com a ajuda de uma bengala.
                
Talvez àquela hora o santo de Assis já tivesse ceado algum manjar divino, e o pobre ovo não se prestava mais, diante do avançado da hora, para a culinária celeste. Mas quem sabe se aquele casal de octogenários não estaria, naquela noite, diante daquela mesa farta de prendas, repetindo, inconscientemente, a oferta feita há dois mil anos por uma viúva pobre, no contexto bíblico dos evangelistas Marcos e Lucas?
                
Nessas divagações, ouviram-se berros caprinos. Era o bode branco de barbicha loura que, suspenso no ar pelas mãos do leiloeiro Gaioso, sinalizava a continuação do leilão.

Sobral, 26.06.1999

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