Por Rangel Alves
da Costa*
Costuma-se
dizer que há coisas inexplicáveis e somente possíveis na ficção. Por sua vez,
as situações extremadas, eivadas de fantasias e muito além do permitido na
realidade humana, a teoria literária denomina de realismo fantástico. Este é a
descrição de situações irreais, sobrenaturais, incomuns e até absurdas, como se
fossem situações costumeiras para determinadas pessoas.
No realismo
fantástico, os fatos são irreais, ilusórios, envoltos em magia ou estranhos à
normalidade cotidiana, mas são abordados como se realmente existissem. Tudo é
possível acontecer: animais podem ter comportamento humano, o homem viver
alheio à realidade e simplesmente levar sua vida esperando que nasçam asas para
poder voar, povoações inteiras viverem num mundo de crenças absurdas e fazendo
disto seu suporte de sobrevivência.
É próprio do
realismo fantástico que o improvável aconteça ou que o absurdo e inusitado
sejam vistos como presenças costumeiras. Nele há um mundo que se desanda para
se amoldar ao mundo de pessoas incomuns. Por isso mesmo tão utilizado pela
literatura e pela dramaturgia. Procura-se fugir dos formalismos e mostrar que é
possível construir uma história real a partir de ilusões e fantasias. E os
leitores e telespectadores geralmente se encantam com os personagens que
apresentam características que desafiam a imaginação.
Contudo, mesmo
que muitos sequer percebam ou conheçam sua existência, a verdade é que o
realismo fantástico também pode ser encontrado na realidade cotidiana, no dia a
dia da vida, nas durezas da normalidade do mundo. Um realismo tão contundente
num povo que logo se imaginaria estar diante de uma absurda fantasia.
Que bom se o
mestre do realismo fantástico, o saudoso Gabriel Garcia Márquez (Cem Anos de
Solidão), tivesse descrito uma situação assim: “O dia amanheceu e não havia nem
um resto de pão, não havia nada chamado alimento. E logo os quatro filhos
despertaram. O menorzinho já choroso de fome. Então a mãe, sem saber o que
fazer, caminhou pelos arredores, colheu folhas verdes e de volta macerou-as,
tornando o mato numa papa verde. E depois entregou uma porção a cada um dos
filhos. A bem dizer, a fome faz tudo ter gosto bom. Talvez seja assim...”.
Igualmente
fantástico se Juan Rulfo (Pedro Páramo), outro mestre do realismo mágico,
tivesse descrito uma situação como esta: “Na verdade, não havia como definir
bem o que era homem e o que era bicho. O homem parecia grunhir, latir, fazer
ruídos caninos, ao morder um osso podre encontrado em meio ao lixão. Antes,
havia ficado de quatro para se locomover sobre os retos putrefatos, sobre as
sobras fétidas ali acumuladas. E na sua companhia um ser calmamente sorvendo um
resto de qualquer coisa. Era um cachorro. Mas os dois numa mesma situação de
miséria”.
De boa lavra
seria se Murilo Rubião (O ex-mágico), autor característico do realismo
fantástico na literatura nacional, tivesse relatado a seguinte situação: “Eis
que o homem de repente se torna palhaço sem nunca haver pisado num circo, se
torna doido de pedra sem jamais ter qualquer problema mental, se torna um
errante desconhecido de si mesmo ainda que tenha moradia fixa e uma família que
o espera. E por que assim? Ora, os abusos dos governantes acabam colocando
nariz de palhaço em cada indivíduo. A sensação de desempregada provoca
insanidade em qualquer um. A desesperança com o presente e futuro faz com que
qualquer pessoa erre os caminhos de volta e saía por aí sem destino. E ele ia
com seu nariz de palhaço dando gargalhadas, levando na mão uma gaiola de onde
soltava passarinhos imaginários a todo instante, mas de vez em quando parando
para dizer que era Deus e depois chorar. E chorava igual criança de berço”.
Da imaginação
de José J. Veiga (A Hora dos Ruminantes), outro exímio expoente do fantástico
nas letras brasileiras, talvez surgisse tal descrição: “Ele dizia a todo mundo
que tinha uma casa. Dizia até ter endereço. Mas tão difícil de ser encontrada
que ninguém realmente a encontrava. Pois não era uma casa, mas apenas quatro
paredes, ora de papelão, ora de tapume, ora numa junção de pedaços de madeira e
tudo que encontrasse pelas ruas asfaltadas. Também dizia ter uma casa mobiliada
de tudo, vivendo no luxo dos ricos. Porém tinha de se contentar com o nada.
Sim, com o nada, pois a única coisa ali existente era o objeto do ser. E quando
ele saía não restava nada”.
Como se
observa, há na vida real, principalmente nas classes mais empobrecidas, um
realismo também fantástico. Ninguém acredita que possa existir vida assim,
ninguém sequer imagina ser possível viver no e do nada. Mas basta se deparar
com a realidade para ter a certeza de que o inexplicável sustenta a própria
vida.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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