domingo, 24 de maio de 2015

UM ITINERÁRIO NO MEU SERTÃO

Por Rangel Alves da Costa*

Acordo na madrugada à espera do impossível. Espero sempre que mais adiante o galo cante despertando a vida, mas inútil esperar a voz da natureza ou de bicho de quintal na cidade grande.

Diferentemente do poema de João Cabral de Melo Neto acerca do galo tecendo a manhã e suas implicações filosóficas, o galo que espero ouvir cantar é aquele mesmo sertanejo, de quintal de ripa ou quem vai dar na mataria adiante. O canto humilde, singelo, igualmente ao homem que logo abre a porta de trás para o primeiro olhar ao seu mundo.

Não há galo nem outro canto qualquer. Quase não há madrugada nem manhã, apenas um passar corriqueiro das horas. Não há aquela magia do alvorecer sertanejo com o gorjeio passarinheiro, as portas se abrindo, o cheiro bom do café. Daria meu reinado por uma xícara de café torrado, daquele que Dona Lídia preparava nas tardes de outros idos.

Também já levanto com uma vontade danada de abrir a porta e sair caminhando pelas ruas sertanejas, saindo do centro e indo em direção aos núcleos mais humildes que se espalham ao redor. Nas vezes que amanheço no meu sertão, logo cedinho já estou caminhando pelas ruas do São José, do Lídia, do Fernando Collor, da Praça Frei Damião e muito mais.
Mas também caminhando pelas margens do devastado Riacho Jacaré, meu querido riachinho, e em cada passo sentindo angústia pela degradação encontrada. Esgotos que descem dos conjuntos e formam poças fétidas e cheias de doenças. As pedras grandes não existem mais, as matas ciliares foram destruídas ou deram lugar a chiqueiros imundos.

Tudo isso guardo na memória. E logo me vem a lembrança de quando o riachinho ainda era bonito de se avistar e conviver e depois das trovoadas nas cabeceiras aquele mundão de água escorrendo. A meninada tomando banho, se jogando das pedras, o canto da passarada ao redor. As cheias ainda existem, o rio ainda faz seu percurso, mas certamente não há mais aquela magia de outros tempos.


Ainda nas manhãs, com o sol ainda escondido, eu atravessava ao outro lado da ponte e colocava os pés num lugar que um dia foi reinado absoluto de Dona Tindinha e família. Ali no alto, por isso mesmo chamado Alto de Tindinha, com vista privilegiada sobre a cidade, se assentava um núcleo familiar que jamais pode ser esquecido na história de Poço Redondo.

Hoje, tanto de um lado da ponte como do outro, as antigas propriedades deram lugar a loteamentos e novas moradias surgiram, umas suntuosas e outras mais humildes. Por ali também se seguia para o Alto de João Paulo por uma estrada completamente nua. Atualmente não há mais deserto, pois são muitas as construções que surgem a cada dia.

Nas minhas caminhadas matinais não atravessei o riacho em direção ao Alto de João Paulo, e por isso mesmo não sei das grandes transformações ali surgidas. Mas da cidade é possível avistar uma realidade completamente nova pelos arredores. Prefiro ficar guardando na memória e na saudade a feição de antigamente.

O Alto de João Paulo é de história viva. Relembro João Paulo sempre alegre, alto e sempre com chapéu de couro à cabeça, apreciador de uma casca de pau. Proseador e amigo. Contudo, sua importância no Alto se igualava a tantos outros que moravam naquele lugar bonito. Local de moradia de Adília, a ex-cangaceira, dos Maximino e tantas outras famílias de renome histórico na região. E nas suas proximidades a moradia de Luiz Doce e de Galego, o ferreiro sem igual no ofício e na amizade.

Desse modo, sinto muita falta de um acordar com motivações para a vida. E não há viver melhor que cortando as veredas do meu sertão, caminhando pelas estradas nuas, dando bom dia a um e outro, reencontrando a verdadeira seiva da existência. E disso concluo que a cidade, seja grande ou pequena, foi feita apenas para o indivíduo se esconder. Eis que a liberdade somente é encontrada nos afastados e esquecidos, perto do espinho e da flor.

Poeta e cronista
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