Por Rangel Alves
da Costa*
No velho
álbum, na velha parede, na velha casa com flamboyant à calçada e jardim
cinzento, há um retrato antigo de uma moça triste. Uma bela moça, porém,
triste, muito triste.
Moldura
antiga, de madeira de lei ornada à mão, mas já perdendo seu verniz pelo tempo,
ali repousa o retrato após o vidro embaçado. A cor antiga perpassa um tênue
amarelado, uma película da idade que vai enevoando lentamente.
Assim também
no álbum de capa dura, belamente desenhada, com motivos floridos num jardim
combalido e tão distante. Nele muitos retratos desde a infância à mocidade, mas
numa fotografia, a maior e já avistada na contracapa, a moça com seu olhar
longínquo e sua feição solenemente entristecida.
Retratos assim
com uma moça assim hoje são difíceis de ser encontrados. Somente nos cartões
postais de antigamente é possível avistar uma jovem tão bela que mais parece
cuidadosamente desenhada, mas sempre carregando na face um olhar de solidão e
um semblante docemente angustiado.
Mas tanto o
retrato na parede como o do velho álbum expressa a realidade de uma moça cuja
feição não omite sua tristeza. Os motivos, as causas de se deixar fotografar
assim são desconhecidas. Mas nos dois retratos o mesmo semblante tomado de
sentimentalismos.
Apenas
imaginação, mas talvez uma desilusão amorosa, uma saudade medonha, um íntimo
sentimento afligindo o coração. Ou simplesmente um jeito de ser, uma
predisposição da alma, uma feição que não tencionou fingir um sorriso.
Muitas são as
pessoas que nascem e levam a vida carregando uma constância triste de causar
sofrimento em que as encontram. Não que sejam pesarosas ou tomadas de amarguras
e desencantadas com a vida, mas simplesmente porque levam na face a flor mais
triste de um jardim.
Um retrato
parecido com aquele da jovem à janela ao entardecer. Todos os dias, assim que
as cores do pôr do sol vão tomando os horizontes, então ela abre seu portal e
se põe a mirar a vida numa tristeza infinda. Olhos que querem chorar, boca que
tremula querendo falar, mas nada precisando dizer senão da solidão sentida.
Ou ainda da
jovem diante do seu diário de solidão, tendo à mão uma fotografia que lhe
afeiçoa ser a outra metade distante, perante uma folha em branco para escrever
as dores e desilusões amorosas. Ou ainda aquelas mocinhas sonhadoras e
melancólicas das páginas românticas e realistas da literatura brasileira.
Ora, Isaura, a
escrava, de Bernardo Guimarães, era uma moça triste. Tanto Diva como Lucíola,
da obra de José de Alencar, eram moças tristes. Sinhá Moça, de Maria Dezonne
Pacheco, era uma moça triste. Carolina, a Moreninha, de Joaquim Manuel de
Macedo, era uma moça triste. E tantas e mais tantas moças tristes encantaram
gerações de leitores. Malvina, de Jorge Amado, também era uma moça triste e
sonhadora.
Quarenta,
cinquenta anos ou mais, que os retratos da moça triste se despediram daquele
instante. Nenhuma notícia resta de sua tristeza daí em diante. Somente a parede
e o álbum guardando a recordação de alguém que não teve motivos para sorrir nem
quando retratada para a posteridade.
Há uma flor no
cabelo e duas flores no olhar. A flor do cabelo quase se mistura às mechas
cuidadosamente penteadas, mas as flores do olhar se lançam num vazio tão
distante que fazem as pétalas serem desfolhadas. E caírem tênues sobre o jardim
da face.
Acaso ainda
existindo na vida, aquela mulher poderia ser novamente retratada na mesma
posição, na mesma direção do olhar e no jeito terno de sua feição. Os cabelos
já teriam outra cor, a face já estaria marcada pelos idos do tempo, mas a
tristeza certamente seria a mesma. Assim porque a idade não molda de outra
forma o que gesta os sentimentos nem o semblante triste de a tudo enxergar.
Seria ainda a
moça triste. E talvez mais triste. Como a flor branca do cafezal que se dissipa
para restar o grão escurecido, assim também nos retratos da vida e na própria
existência.
Poeta e
cronista
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