Por Rangel Alves
da Costa*
Equidae
culpabilis, ou livremente traduzindo da expressão latina: A culpa foi dos
cavalos. Ora, se um crime de dano é cometido, pois lesionando um bem jurídico
tutelado, e não se pretende, por razões óbvias, imputá-lo a um ente humano ou
jurídico, logicamente que se busca culpabilizar até mesmo animais. Em algumas
sociedades primitivas, o animal que cometesse ato de violência ou destruição
era sacrificado. No mundo moderno ainda subsistem resquícios de imposição de
pena a animais. Perdem o convívio com a natureza, são trancafiados, castigados
ou imolados.
Em Sergipe
ressurgiu essa desonrosa sentença: a culpa foi dos cavalos. Equidae
culpabilis. A partir da tarde de sábado, dia 09, assim que a notícia sobre o
desabamento da velha Ponte de Pedra Branca se espalhou, logo alguns, já
prevendo os ataques que recairiam sobre supostos responsáveis pela manutenção
da ponte e da tubulação que se estendia por cima de sua frágil estrutura,
começaram a dizer que toda a culpa recaia sobre os cavalos. Certamente os
animais foram impertinentes demais ao tentar atravessar por aquele local. E por
que assim fizeram e provocaram a tragédia, então teriam de ser reconhecidos
como culpados.
Santa
inocência! Desde muito que a tragédia estava anunciada e aconteceria mesmo com
o sopro da ventania. Construída em 1933 e já há mais de vinte anos sem receber
manutenção, a carcomida estrutura ainda tinha de suportar o volume de pesada
tubulação da Adutora do São Francisco. E uma tubulação também sem o devido
acompanhamento dos órgãos responsáveis. É uma conclusão lógica que se houvesse
cuidado com a tubulação logo se perceberia o estado de precariedade em que se
encontrava a ponte. Mas não, foram simplesmente deixando no estado que estava e
permitindo a passagem de pessoas e animais. E tudo foi por água abaixo.
Mesmo que se
discuta acerca da competência, se federal ou estadual, para manutenção da
ponte, não se pode esquecer que a tubulação foi instalada pelo governo estadual
para o escoamento das águas da Adutora do São Francisco e, também por isso,
deveria cuidar da manutenção de toda a estrutura. Não só manter e preservar
como ter fechado os dois lados da ponte para que não servisse de passagem para
gente ou animal. Como bem observou o professor Vilder Santos, por ali costumava
passar procissões. E se o desabamento ocorresse durante uma peregrinação?
Desse modo, no
caso de não se pretender apontar qualquer responsabilização humana ou
administrativa pelo fato ocorrido na Ponte de Pedra Branca e que provocou danos
incalculáveis em grande parte da população sergipana - principalmente pelo
desabastecimento de água na Grande Aracaju -, basta afirmar que a culpa foi dos
cavalos que passavam pela velha e carcomida estrutura quando tudo desabou e a
tubulação se rompeu. Ou a já imprestável canalização se rompeu e forçou a queda
da ponte já em frangalhos. Ou talvez apenas uma junção de fatores.
A verdade é
que até agora nenhuma autoridade veio a público se responsabilizar ou apontar o
responsável pelo acontecido. Seria inoportuno e até desrespeitoso à população
tratar o caso como mera fatalidade, como certamente gostaria. Preferem mesmo
que os animais sejam vistos como culpados até o momento que tiver de dar outra
explicação na justiça. E muitas serão as ações de reparação pelos danos
praticados contra o povo, o comércio e demais entidades. Surgirão ações civis
públicas e pleitos indenizatórios individuais. E no polo passivo certamente não
estarão os cavalos.
Mas até o
momento os adoradores do poder tudo fazem para continuar culpabilizando os
cavalos. E dizem que não adianta queira culpar mais ninguém. É vergonhosa
defesa do indefensável, mas é assim que funciona. Joga-se, com fervor tribuno,
a culpa nos animais, para que rapidamente não se aponte os verdadeiros
responsáveis pela tragédia, ainda que todo mundo saiba de quem é a culpa. E
segundo vozes abalizadas, a manutenção da ponte e da tubulação era de
responsabilidade do governo estadual e consequentemente é do estado a culpa
pelo ocorrido.
Culpa não,
dolo indireto, na modalidade culposa. Indireto porque mesmo não tendo a
intenção de ter a ponte desabando e a tubulação destruída, se omitiu na prática
de atos para evitar o evento danoso. Na modalidade culposa porque o agente deu
causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. Neste caso,
evidentemente que houve negligência na conduta e inobservância nos cuidados
necessários para que os resultados lesivos fossem evitados.
Mesmo que não
se deseje tipificar como dolo a ação, não há como não fugir da culpa
inconsciente. Nesta, o agente não prevê o resultado, que, entretanto, era
objetiva e subjetivamente previsível. Ainda assim, diante da possibilidade do
dano, agiu de forma negligente ao não ter a devida precaução ou agir com
indiferença diante da iminência de a ponte e a tubulação desabarem pela ação do
tempo e a falta de cuidados.
Quanto aos
cavalos, a maior parte deles já foi condenada. Quebraram pernas e membros e
tiveram de ser sacrificados. Os sobrevivos emudeceram de vez e os mortos já não
podem relinchar em suas defesas, dizer que foram vítimas e não culpados.
Enquanto isso, tudo segue cobrando o sacrifício também do povo.
Poeta e
cronista
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